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Sociedade. Enfim, surge uma análise decente sobre o Brasil e a Copa do Mundo da Alemanha

Não escondo. Os editoriais (normalmente a parte mais chata de uma publicação, escrita com pompa, circunstância e uma certa arte de quem quer ser dono do mundo, ditando leis – como se a opinião do jornal ou da revista fosse a melhor e única do planeta) são uma obrigação profissional. Nunca um prazer. Ou quase nunca

Abro apenas uma exceção. Não pela opinião, com a qual nem sempre concordo. Mas pelo texto. Fino texto. Fácil texto. O erudito legível, se me entende. Me refiro aos da revista Carta Capital, que circula em Santa Maria a partir do domingo, ou segunda-feira. São um exercício de prazer, lê-los. Concisos, enxutos, precisos – e com muita coisa a dizer, para além do regramento do mundo.

E me compraz ler, muito especificamente, os textos (normalmente colocados na seção “A semana”) assinados por Mino Carta. Um sujeito com um quê de aristocrata, inclusive da pena, para utilizar um termo da idade dele. Mas que formou, organizou (e deixou ou foi deixado) algumas das mais ricas, no”bom sentido” do termo, redações brasileiras.

Divido com você, abaixo, e na íntegra, o que Mino escreve na mais recente edição da Carta Capital (que, talvez, você já possa comprar na Banca da Lúcia, ali na Rua 24 Horas, no prédio do Caixeiral). Ele fala de futebol, de Copa do Mundo, e da forma como nós, brasileiros, em regra, encaramos o esporte mais popular do planeta.

Ah, pra constar: este editorial é a síntese do que eu próprio penso. Mas jamais terei talento (e a quantidade informações de MC) para escrevê-lo. Em todo caso, esforce-se e, se quiser, faça de conta que fui eu. Agradeço:

”Melhor futebol do mundo?
O Brasil é a terra da bola, com safras únicas de talentos. Procuremos entender por que falta espírito crítico

Na noite de sábado, 1º de julho, um dos especialistas da enésima, interminável, arrogante e penosa mesa-redonda global afirmava: “Ainda somos o melhor futebol do mundo”. Aquele que acabava de perder para a França de Zinedine Zidane. Aquele de Ronaldinho, Ronaldo, Roberto Carlos, Cafu e Cia.

Repetita juvant, diziam os antigos romanos, a repetição ajuda. Repita e repita, até que todos acreditem, inclusive o autor da afirmação inicial. Neste nosso Brasil, a credulidade é proporcional à distância que nos separa da razão. Mas, antes do revés do melhor futebol do mundo, vem, a largas passadas, o fracasso da mídia e de quantos acreditaram nela.

A começar pelos publicitários nativos. Tiraram a mulher nua da ribalta e a substituíram pelo craque que ri. Do quê, a esta altura, não se entende. Podemos é rir de nós mesmos. Por exemplo: como sempre, não houve equipe maior de jornalistas, cinegrafistas e que tais, do que a verde-amarela. De longe, de muito longe, a mais imponente.

O Brasil é, de resto, o único país do mundo em que se transmitem ao vivo os treinos da seleção. Aquele espetáculo divertido, horas a fio: jogadores entretidos em embaixadas, goleiros a saltitar entre uma bola e outra, Ronaldinho experimentando seu canhão (folha-seca ou folha murcha?) contra barreiras de madeira. E mais lances similares, naquele recreio folgado, enfeitado, à margem, por torcedoras em trajes de coristas. Haja alegria.

O futebol é apenas um jogo, empolgante, está claro, show grandioso merecedor de platéia infinda e refletores imensos. Jogo é, porém. E a nós convém compreender que nossa paixão nasce também, e sobretudo, de um recalque igualmente imenso. Ou infindo. Sim, todas as torcidas choram na hora da derrota, nem por isso é consolo.

Quando, aos 12 anos, cheguei a São Paulo e fui estudar no Colégio Dante Alighieri, agosto de 1946, muitos colegas e contemporâneos, mesmo filhos e netos de italianos, encaravam-me com antipatia por enxergar em mim um torcedor da azzurra, vencedora do último Mundial, o de 1938, disputado na França. Na semifinal, a Itália eliminara o Brasil por 2 a 1, graças a um pênalti, segundo eles inventado pelo juiz.

Na época, os juízes de futebol eram bem mais confiáveis do que hoje, ainda assim essa era a crença e eu carecia de informações para desmenti-la. Tempos depois, fim da década de 50, na Itália vi o filmado dos momentos principais daquela partida. O pênalti existiu, cometido por Domingos da Guia sobre Piola, a azzurra ganhava por 2 a 0 até os minutos finais, quando a seleção brasileira fez seu gol.

Verdade é que Leônidas, revelação daquele campeonato, não estava em campo, machucado. Verdade, também, é que a maioria dos espectadores torceu pelo Brasil. Primeiro, porque o time italiano representava o país de Mussolini. Segundo, porque francês encanta-se com o exotismo do Trópico.

Tropical splendour, diria Cole Porter.

No Mundial de 1950, a seleção canarinho começou em câmara lenta e encontrou a escalação definitiva nas oitavas. Havia ali cinco jogadores excepcionais, Bauer, Danilo, Zizinho, Ademir e Jair, e um bom goleiro, Barbosa, destinado a tornar-se o costumeiro bode expiatório, juntamente com o lateral-esquerdo Bigode.

O dia da final, contra o Uruguai, fica na história das tragédias, como registram os genes nativos para todo o sempre. A celeste olímpica não desmereceu a vitória. Era um time mais equilibrado do que os canarinhos, graças à melhor distribuição dos craques indiscutíveis, Maspoli, Matias Gonzáles, Rodrigues Andrade, Obdulio Varela, Ghiggia, Schiaffino, em todos os quadrantes do gramado.

Em 1954 o Brasil foi eliminado pela Hungria de Puskas, por 4 a 2, nas oitavas. Ouvi o jogo pelo rádio, em ondas intermitentes, ora marulhar de baixa maré, ora rugido do mar enraivecido pela teimosia do rochedo. Dava para entender, de todo modo, que o juiz, certo Mister Ellis, favorecia desbragadamente os magiares.

Anos adiante, assisti ao filme da contenda e constatei que o inglês fizera seu papel com dignidade, enquanto os húngaros sustentavam o seu com excelência. Em compensação, a delegação brasileira agrediu os vencedores no fim do jogo, em campo e pelo corredor do vestiário. Nunca esquecerei a perfeita pontaria de uma chuteira atirada por mão nativa contra a cabeça de um prócer adversário, e do jornalista Paulo Planet Buarque no ataque aos danubianos de clava em punho, digo, o guarda-chuva.

A virada é de 1958. Não sei se foi obra do técnico Vicente Feola, Hitchcock pachorrento e sem malignidade, ou dos próprios jogadores. Deu-se, de fato, que em campo acharam a escalação ideal e promoveram uma revolução. Inventaram o 4-2-4, capaz de tornar-se 4-3-3. A partir daí, o futebol não seria mais o mesmo.

Naquele time, desde as oitavas, não houve ponto fraco, de Gilmar a, pasmem, Zagallo. No gramado, então sim, então claramente, o melhor futebol do mundo. O qual, ainda que envelhecido, confirmou a supremacia quatro anos depois, no Chile.

Pano rápido sobre o desempenho de 1966. Fica a imagem de Pelé ao sair de campo, na tarde sombria da eliminação, envolto em um cobertor. Mas em 1970, no México, os canarinhos voltaram a praticar, em largos momentos, o melhor futebol do mundo. Contra a azzurra, na final, torci pelo Brasil, e os meus colegas de então, da redação de Veja, hão de se lembrar do meu comportamento.

Dias após, sofri a amargura do arrependimento, ao ver no vídeo o general Emílio Garrastazu Médici a se entregar a uma série lamentável de embaixadas na praça dos Três Poderes. Não consegui furtar-me a um pensamento banal sobre o futebol como, perdoem, perdoem, o ópio do povo. Às vezes, melhor é torcer contra. Se torcer adianta.

De 1970 a 1994 o Brasil não pegou na Taça. O estribilho “campeão moral” soa como desculpa. Quanto ao time italiano que eliminou o Brasil em 1982 no Sarriá era muito bom, embora a mídia brasileira não soubesse. A mídia brasileira ignora muitas coisas, quem sabe porque não consiga esticar sua visão além das fronteiras situadas entre o Oiapoque e o Chuí.

Em 1994 a vitória se deu nos pênaltis. Ninguém negará, contudo, que a campanha da seleção verde-amarela foi melhor do que a do outro finalista, a azzurra. Pequena observação: previamente, o dono da Fifa, João Havelange, prestava deliciosa homenagem ao seu ex-genro Ricardo Teixeira, dono da CBF, a todos os demais competidores, ao “descobrir” (não gosto de palavras entre aspas, mas desta vez cabem) que Maradona era dado a drogas. Claro, claríssimo: a Argentina crescia. Fora Maradona, encolheu. Tudo ficou mais fácil. Pano rápido sobre 1998. Zidane é Zidane, Ronaldo é Ronaldo. Quanto a 2002, tenho lá minhas dúvidas, já me pareceu refilmagem da primeira película do cinema americano, The Train Robbery.

Espero que a derrota de hoje não nos acabrunhe demais, bem como sirva de lição, em proveito da liberação do imenso recalque. Ou infindo. Inúmeras vezes, o futebol brasileiro foi o melhor do mundo. O sol, contudo, nem sempre aparece.

Se me disserem que o Brasil é terra de futebol, nisso acredito e assino embaixo (ou em cima). Terra de senhores ferozes e de súditos submissos. A mídia diz trabalhar para estes, é, porém, o exato contrário. A João Havelange e Ricardo Teixeira, e tantos outros do mesmo porte, prefiro Lampião e Maria Bonita.

Aproveitam-se de safras, únicas no mundo, as mais abundantes, de talentos extraordinários, de vocações definitivas, com a contribuição inestimável da fibra longa do músculo mestiço. Mais ou menos como outros senhores construíram seu poder sobre o suor da plebe. Até quando não saberemos emergir da condição de plebe, com direito, entre outros dons, ao espírito crítico?”


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