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Marília – por Orlando Fonseca

DO BAÚ – Depois de passar longo tempo preso, depois solto, depois preso, enfim… agora em liberdade provisória, José Dirceu amarga mais uma derrota. Por outro lado, a operação Lava Jato demonstra que tem ido ao pré-sal das investigações. O que se descobriu agora pode mudar tudo o que já se disse no país nos últimos anos e, por que não dizer, nos últimos séculos. O Brasil não será mais o mesmo, e os livros de história e de literatura terão de ser reescritos. A denúncia já foi apresentada à Procuradoria Geral para os devidos encaminhamentos lítero-judiciais.

Trata-se da Operação Arcádia, que a PF vem realizando em paralelo com a Operação Lava Jato. Segundo dados levantados nos alfarrábios do poeta Tomás Antônio Gonzaga, restou líquido e certo que o indigitado Dirceu praticou delíteros graves com a indefectível Marília. Através de um grampo autorizado na papelada dos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, foram encontrados fatos inequívocos de que este mineiro, nascido em Passa Quatro, cometeu abusos e que a neoclássica Marília, além de ser de Dirceu, foi por ele induzida a erro.

No capítulo intitulado por Gonzaga como Lira VIII, aparece a primeira prova: “Marília, de que te queixas?/ De que te roubou Dirceu/ O sincero coração?” (negrito nosso). Logo em seguida, a razão de este episódio nebuloso ter ficado tanto tempo sem investigação: “Desiste, Marília bela,/ De uma queixa sustentada/ Só na altiva opinião”. Ou seja, amigo leitor, não é de hoje que o malévolo Dirceu vem se queixando de ser condenado sem provas, apenas pela opinião de delatores premiados ou por justiceiros.

Mas o maior achado, que liga Dirceu à corrupção na Petrobras, aparece no capítulo Lira XI. Não contente em apenas seduzir Marília, Dirceu a induz a crimes maiores: “Busquemos, ó Musa/ Empresa maior”. Embora ela o tenha alertado em um primeiro momento: “Dirceu não sobe tanto”, em seguida se vê que teve participação ativa nos ataques à Empresa (leia-se Petrobras): “A empresa honrada,/ Co’a mão manchada/ Recolho as setas,/ Que me deixou”. Não restam dúvidas aos peritos que “as setas” indicam um código para propinas.

Por essa o Dirceu não esperava. Se bem que o próprio Gonzaga parece já alertar sobre as agruras de uma prisão paranaense: “”Confessa, louco, o teu erro (…) Não vale a externa defesa/ Dessa armadura de ferro.” Na época dos inconfidentes, a legislação se chamava Ordenações Filipinas. Nos dias atuais, tudo o que se sabia sobre ordenações está relativizado, (Silvério dos Reis estaria em boa companhia). A literatura jurídica não rende mais um poema como o do Gonzaga.

EM TEMPOS de patrulha ideológica contra o nu, em exposições de arte, esta crônica famosa do escritor mineiro, Fernando Sabino, teria de passar por algumas providências para não chocar suscetibilidades ou fundamentalismos (e ignorâncias).

 

O Homem Nu
Fernando Sabino

Ao acordar, disse para a mulher:

— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.

— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.

— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.

Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.

Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:

— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.

Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.

Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares… Desta vez, era o homem da televisão!

Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:

— Maria, por favor! Sou eu!

Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo… Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.

Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.

— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado.

E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pelo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido… Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!

— Isso é que não — repetiu, furioso.

Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: “Emergência: parar”. Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.

— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.

Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:

— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu…

A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:

— Valha-me Deus! O padeiro está nu!

E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:

— Tem um homem pelado aqui na porta!

Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:

— É um tarado!

— Olha, que horror!

— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!

Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.

— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.

Não era: era o cobrador da televisão.

FONTE: http://www.releituras.com/fsabino_homemnu.asp

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