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Turista acidental – por Carlos Dominguez

Fazia já alguns anos que não visitava Santa Maria. Padecia de uma saudade verdadeira de bons momentos e lugares agradáveis para estar com os amigos. Estava radiante. Saiu de viagem bem cedo, mal o sol vinha nascendo, fraquito, por trás de pesadas nuvens no horizonte.

  • Tomara que não chova – disse alto, para si mesmo enquanto jogava a mochila com poucas peças de roupa na mala do carro. Estadia curta. Agenda carregada. Congresso no Hotel Itaimbé era o primeiro compromisso, já pela manhã, onde chegaria atrasado. Resolvera ir de carro para “apreciar mais a viagem” e poder ficar motorizado em sua breve estada. Queria beber visualmente Santa Maria. Morava perto da Capital e estava farto da região metropolitana. Sonhava acordado enquanto dirigia, ouvindo uma música, perdido em seus pensamentos mais verdadeiros que poucas vezes tinha coragem de dizer em voz alta. Sempre fora um pouco tímido, muito embora agora os percalços da vida e as exigências da profissão o obrigassem a deixar estas vergonhas para o lado.

O trânsito pesado lhe devolveu para a realidade. Uma camionete zuniu ao seu lado em uma suicída ultrapassagem. A faixa amarela era dupla, por conta do relevo que iniciava uma subida acentuada. Simplesmente não dava para ver nada. E a camionete foi, como se nada pudesse lhe atingir.

  • Caramba. Este cara vai se matar! – exclamou, bem alto, sem perceber que estava sozinho no carro. Alguns quilômetros mais adiante outro susto. Uma carreta tentava a sua frente, na contra-mão, ultrapassar um caminhão menor. Vinham os dois em cima de um morro, descendo em alta velocidade na sua direção. Ele deu sinal de luz, mas a carreta seguia desabalada em sua direção. Teve de ir para o acostamento, todo esburacado e com um degrau de desnível em relação à pista. Ficou assustado. Mesmo. Parou o carro e observou os dois caminhões indo ao longe, sem tomar conhecimento dele e de seus dramas.

Foi adiante, mais cauteloso. O tempo ameaçava chuva. Ao longe um paredão cinzento e escuro preenchia toda a extensão do horizonte.

  • É para lá que eu vou – disse com temor.

Não gostava de guiar à noite. E o tempo escurecia rapidamente no meio da manhã. Raios já podiam ser vistos. Os carros que vinham em sentido contrário estavam molhados e tinham os faróis acesos. Junto com a chuva chegaram os buracos. Um festival deles. De todos os tipos e feitios. Asfalto se esfarelando. Uma pista completamente desnivelada. Toda torta. Como se tivesse sido construída por crianças peraltas. Uma pista perigosamente mortal. Era muito fácil perder o controle ou cair na famosa aquaplanagem. Teve medo de novo. O trânsito era pesado. Carros e caminhões iam e vinham, rápidos. Caminhões mais lentos formavam filas que deixavam os motoristas mais apressados cada vez mais imprudentes.

  • Inferno – resmungava.

Dirigiu tenso até chegar a cidade. Foi direto para o hotel, sem escalas e sem apreciar a paisagem que aguardara tanto. Quando chegou, foi direto ao quarto tomar um banho e se preparar para o congresso. Chegou no salão atrasado e de mau humor. As palestras e discussões que antes o empolgaram lhe pareciam enfadonhas. Incrivelmente longas. Já passava da hora do almoço quando resolveu deixar o local e procurar algo para comer. Foi a pé, pois a perspectiva de dirigir, mesmo na cidade, o enojava. Saiu caminhando, sozinho, em direção ao centro. Neste momento o sol reapareceu.

  • Pelo menos isso – exclamou.

Na ponte, sobre o parque Itaimbé, se deparou com o novo prédio da prefeitura que ouvira falar mais ainda não vira pessoalmente. Foi se aproximando, olhando para cima, buscando informações visuais e registrando a cena. Reparou nos Ipês floridos de amarelo. No vai e vem das pessoas. Relaxou. Resolveu descer ao caminho do parque, logo atrás da prefeitura. Continuou caminhando e olhando. Passou pela pracinha de brinquedos e viu o mal estado dos balanços e rodas. A areia suja e cheia de poças de barro. Apenas um banco com sombra onde uma senhora olhava suas crianças brincando. Era certo que chovera à noite. Foi pelo caminho de concreto e quase leva um tombo ao não perceber rachaduras que criavam perfeitas armadilhas para transeuntes desavisados. Resolveu voltar em direção à ponte e se horrorizou com o jardim mal cuidado e o concreto todo esburacado.

  • Buraco na estrada, buraco na cidade. Eu mereço.

Passou por baixo da ponte indo em direção ao famoso Bombril. Ficou triste. Tudo tinha cara de velho e mal-cuidado.

  • Se aqui, do lado do hotel e da prefeitura está deste jeito, não quero nem ver o resto!

Foi até a lancheria ao lado do Bombril, que lhe apareceu meio abandonado. Sentou do lado de fora, ao sol, e pediu uma cerveja para desarmar o espírito. Era sábado. Fim de semana. Tinha sol, não muito, mas a temperatura era agradável. Ficou por ali, sem falar nada com ninguém, apenas olhando o movimento dos que iam e vinham, das crianças que brincavam na areia da cancha de futebol. Viu, ao fundo da rua a sua esquerda as duas torres da catedral emergindo de um aglomerado de prédios desbotados. Se sentiu sufocado. Não teve nem vontade de ligar para seus amigos “da antiga”. Foi entrando para dentro de sim mesmo. Mal molhava os lábios na cerveja que esquentava no copo. Não havia ninguém nas janelas dos prédios que davam para o parque, lugar que sempre lhe despertara uma curiosidade misturada com inveja dos que por ali moravam.

  • Vivem em frente a este parque e nem olham para ele – resmungou.

Do nada surge um vulto ao seu lado. Lhe olha meio assutado até que lhe abraça e dá um beijo na bochecha e agarra sua mão.

  • E ai meu amigo! Como vai? O que tu faz aí?

Ele fica tentando lembrar quem é. Até que num lampejo recorda:

  • Elton? – indaga, medroso.

Era um das “antigas”. Perdera a contato quando ele se acidentara de carro e ficara meio trololó dá cabeça. É o que tinham lhe dito. Nunca mais o vira. Meio sem jeito, pergunta de outro “das antigas” que andava sempre com o Elton.

  • E o Lucas?
  • Caiu. O Lucas é um desgraçado. Tava em Porto. E caiu assaltando para comprar crack. Filha da mãe, porra. Não sei por que ele fez isso, cara? Que merda.

O “amigo” ficou por ali, repetindo ininterruptamente a mesma história vinte vezes. Intercalava trechos sobre a sua própria vida, num monólogo sem sentido. Quando não aguentou mais a ladainha resolveu ir embora. Deu tchau para o Elton, pagou a conta e voltou para o hotel.

  • Oh dia murrinha!

Entrou no hotel, percebeu que os trabalhos da tarde já começavam. Foi no bar, comeu um salgado com café e voltou para o congresso. A tarde se arrastou. Nem prestava atenção no que via e ouvia. Estava com a cabeça na lua. Lembrava de outra cidade. Lembrava de outra vida. Uma vida que lhe parecia agora assustadoramente distante. Muito distante. Inalcansável. Pela primeira vez, sentia-se velho. O tempo, ligeiro, o marcara na paleta.

Carlos Dominguez

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