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Memória e esquecimento – por Luciano Ribas

Graças ao professor Ayrton Dutra, do Mestrado em Artes Visuais, li um pequeno livro chamado “Livro da Memória e da Esperança”, do italiano Remo Bodei. Ao contrário do que parece, não é nem um livro de auto-ajuda, nem possui conteúdo religioso. Trata sobre o que os povos lembram e esquecem e como são os mecanismos sociais do memorizar e do esquecer, tendo como pano de fundo o período compreendido entre 1991 e 1993 e como palco a Europa.

Naquele momento, o Velho Mundo assistia a queda do Muro de Berlim, a fragmentação e as guerras na antiga Iugoslávia e o processo de unificação das nações européias ocidentais. Fatos que instigavam no autor uma necessidade de, mais do que compreender como tudo isso ocorria, manter viva e alimentar a esperança nos “mais nobres valores humanos”.

Mas a reflexão que o livro me provocou não foi assim tão altruísta. Há muito tempo me angustia a certeza de que o destino da absoluta maioria da humanidade é o esquecimento e, com ele, a verdadeira morte. Como todos sabem, sou ateu “praticante”; ou seja, me dispus a pagar o alto preço da falta de conforto para a nossa (minha) finitude para não compactuar com ilusões místicas de qualquer natureza. No meu pensamento, fora da memória não há vida eterna.

Nesse meu pensar com conexões pouco óbvias, entraram em cena lembranças de pessoas que a cidade tratava (e trata) como loucos e que, pelo que imagino, já não “convivem” mais conosco. Lembrei do Mudo da Catedral, da sua mania de assustar quem passava, do seu bastão e do seu quepe surrado; de uma senhora negra que ficava na esquina da Drogacentro escrevendo páginas e páginas num caderno e que teria sido professora; de um homem que carregava uma cruz de madeira e benzia prédios e ruas da cidade, num ritual solitário; de outro que se fantasiava de Rambo, calça camuflada e faixa na cabeça, ensaiando lutas na Saldanha Marinho; mais um que não fazia nada de especial, mas possuía um cabelo enorme e endurecido, provavelmente pela sujeira; da Maria Cebola, que certa vez impediu professores e alunos do João Belém de saírem do prédio com um bastão (ou seria um facão?) em punho; da senhora que chamavam de Cocota e que tinha a mania de fazer suas necessidades fisiológicas pelas ruas do centro; da Muda do Pelotão, considerada ninfomaníaca e que teria morrido de complicações da AIDS; de um senhor deficiente físico que mantinha seu “ponto” em frente à antiga Livraria Evangélica, na Rua do Acampamento, e que repetia uma frase que nunca compreendi; do Crocante, magro e ágil, dançando nas manifestações estudantis dos anos 80. Todos pouco lembrados hoje, certamente muito esquecidos em vida mas que, talvez, perdurem mais do que a maioria de nós, pessoas bem integradas à sociedade de consumo, caso alguém resolva contar suas histórias – Beto Cassol e Clayton Coelho, talvez seja esta uma belíssima empreitada.

Hoje tenho a sensação de que Santa Maria possui menos “loucos” por suas ruas: temos o Bozó, o Piolho e mais dois ou três, quando muito. Também sinto que meus filhos terão muito menos do que lembrar sobre as ruas santa-marienses, simplesmente porque elas se tornaram, muito no nosso imaginário e um tanto no seu dia-a-dia, espaços selvagens e perigosos. E isso me assusta.

Nesse clima precocemente saudosista e com o perdão dos meus três ou quatro leitores, me permito externar um sentimento difuso no fim deste texto. Gostaria que nossos loucos ressuscitassem, trazendo junto sua poesia torta e tempos menos duros, onde manifestações, praças e ruas nas quais crianças pudessem andar ainda fossem possíveis. Talvez um dia novamente hajam passeatas, praças sejam do povo como o céu é do condor e crianças possam correr nas ruas. É utópico, mas escrevo como Remo Bodei, para manter a esperança viva. Espero que outros também o desejem.

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