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Esquecimento, racismo e exclusão – por Luciano Ribas

Há algum tempo publiquei nesse mesmo espaço um texto intitulado “D’Além Mar”, onde contei algumas coisas sobre antepassados que vieram construir suas vidas no sul do nosso país.

Naquele texto registrei que não foi por espírito de aventura que o meu trisavô – um lombardo chamado Stefano Ferrari, que foi membro do exército do Reino da Itália durante a fase final da unificação – arriscou as vidas da sua esposa Giudita e dos seus dois filhos pequenos ao decidir atravessar um oceano de incertezas para morar no Brasil. Ao emigrar, ele não fugiu apenas da fome e da pobreza, mas sobretudo da arrogância dos privilegiados que consideravam os pobres da Europa como pouco mais do que escravos. Tanto é verdade que, por anos, os proprietários de terra alimentaram a ideia de que aqueles que emigraram eram “vagabundos” que fugiam do trabalho nos campos.

Passaram-se os anos e, hoje, milhões de descendentes de italianos, alemães, polacos, portugueses, espanhóis e russos, entre outras nacionalidades, formam a maior parte da população da região Sul e uma parte significativa da que habita o Sudeste do Brasil. Mesmo com origens diferentes, todos possuem em comum uma mesma herança: descendem de gente discriminada nos seus países de origem, em diferentes momentos da história contemporânea. Todos são netos, bisnetos, trinetos e tataranetos do preconceito e do desrespeito que obrigou seus antepassados a abandonarem suas pátrias e, sendo bem objetivo, não há olho azul capaz de esconder essa verdade factual.

Ocorre que a memória dessa exclusão original foi “apagada” pela prosperidade alcançada por boa parte de tais descendentes, que habitam as regiões mais desenvolvidas do nosso país. Não por acaso, as mesmas regiões que, por séculos, contaram com uma maior presença do Estado e que tiveram suas estruturas fundiárias alteradas pela colonização, além de possuírem características climáticas e geográficas mais favoráveis do que o restante do país.

Tal “apagamento” talvez até ajude a explicar (mas nunca a justificar) porque uma parte (ainda) minoritária dessa descendência deixou aflorar uma até então escondida mesquinharia racista, principalmente contra os nordestinos. A desculpa para isso foi o resultado da eleição presidencial e o mito, alimentado por parte significativa da mídia, da “guerra” entre sul e norte.

Fechadas as urnas, explodiu na internet uma lamentável onda de frases racistas de gente que se julga “elite” sem ao menos chegar perto dos critérios propostos pela teoria de Gaetano Mosca. São verdadeiros ignorantes, em alguns casos alimentados por dinheiro e interesses; noutros, simples bobos alegres dispostos a aderir a qualquer sentimento que julgue o “outro” como inferior e culpado pelo que lhes desagrada. Gente de má índole ou de personalidade fraca e que desconhece o que são processos históricos, especialmente os mais recentes: nos últimos anos, por exemplo, são registradas taxas de crescimento econômico no Nordeste semelhantes às chinesas, alimentadas por pesados investimentos estatais e privados. Aliás, isso é tão verdadeiro que o histórico fluxo migratório começou a se inverter, com muito nordestinos voltando para seus estados de origem.

São tão emburrecidos aqueles que alimentam a versão local da xenofobia que ignoram o fato de que, caso fossem eliminados todos os votos do Norte e do Nordeste, Dilma ainda seria eleita presidenta da República. Mais, se fôssemos ainda mais puristas e esquecêssemos também os votos do Centro-Oeste, o resultado ainda seria o mesmo. Ou seja, é uma bobagem continental como o Brasil a ideia de que a vitória de Dilma Roussef resultou de uma “grande cisão” entre sul e norte, algo que somente se sustenta nos infográficos interesseiros da Veja, da Globo, da Folha, do Estadão e de outros menos influentes.

Racismo é crime, deve ser combatido sempre, assim como a exclusão social que negou ao velho Stefano o direito de envelhecer vendo as águas do Rio Pó. Tenho a certeza de que a presidenta Dilma, filha de um imigrante búlgaro, seguirá combatendo ambos para que o Brasil se desenvolva plenamente como Nação mestiça. A maior herança dos oito anos do governo Lula sem dúvida alguma é a possibilidade real de que isso venha a acontecer.

Luciano do Monte Ribas é designer gráfico, graduado em Desenho Industrial e mestre em Artes Visuais pela UFSM. É sócio da Inox – Ideias Sempre Novas, agência santa-mariense de publicidade e propaganda, há dez anos.

Para segui-lo no Twitter: www.twitter.com/monteribas.

EM TEMPO – veja aqui um vídeo sobre a onda de racismo no Twitter: http://www.viomundo.com.br/denuncias/internauta-respondera-por-racismo-e-incitacao-publica-de-pratica-de-crime.html

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2 Comentários

  1. Caro Luciano,

    Parabéns mais uma vez pela clareza de teu texto.
    Já comentei pessoalmente contigo,sobre a importância de outro texto teu, que utilizei como resposta para alguns colegas do Banco.

    Mas este aqui, posso definir simplesmente como brilhante.

    Continue nos brindando com textos como este.

  2. Até por falta de capacidade, eu jamais faria algum reparo aos sempre ótimos textos do Luciano.
    Mas, penso que pode ter faltado citar a origem deste movimento de xenofobia que explodiu no país.
    Talvez até por polidez, Luciano não tenha citado que tudo isto tem um culpado. Ou dois.
    Serra e PSDB fizeram a campanha mais sórdida e suja já presenciada no Brasil. Claro que com a valiosa contribuição dos veículos de comunicação citados no texto.
    E deu nisso que aí está. Em algum momento da história eles deverão ser responsabilizados.
    Li na internet e achei interessante:
    “Serra plantou o ódio e o Brasil colheu o preconceito.”

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