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Cota de humanidade – por Orlando Fonseca

Quando nascemos, recebemos uma cota de humanidade pela qual temos responsabilidades do berço ao túmulo. Compromisso elevado de mantê-la tal como a recebemos, e fazendo o máximo de esforço em aprimorá-la, acrescentando-lhe valores positivos. E ainda temos a responsabilidade de a transmitir, não apenas como herança genética, mas, sobretudo, cultural. No entanto, com a difusão da cultura do ódio, do patrocínio da falsidade e da mentira (nas redes sociais) a propagação de inverdades, negação de postulados científicos e a subversão do senso comum, parece-me que há um esforço orquestrado para desmerecer o que a humanidade pode fazer de bom pela porção de seres vivos providos de racionalidade no mundo. E mais, ainda, esculhambar a nossa casa, nosso planeta, nosso e dos demais seres vivos, aos quais demos os bonitos nomes de fauna e flora. Atacando, irracionalmente, os pilares desta bela moradia que nos cabe, o planeta Terra, azul, – como o viu pela primeira vez Gagarin – num esforço de lhe tirar essa e outras cores. As mudanças climáticas dos últimos anos indicam que o humor do nosso Planetinha não está dos melhores.

Quem não fica estarrecido com a violência estampada nas manchetes que tomam conta dos noticiários? Quem não fica apreensivo com as condições do tempo, cada vez mais adversas, arrasando comunidades inteiras? Antes víamos a destruição de tornados e ciclones no sul dos EUA e região do Caribe, como se estivéssemos assistindo a um filme-desastre. Agora vemos aqui, pertinho, na costa do Rio Grande do Sul, através de um fenômeno que nos parece novo: ciclone extratropical. Há alguns anos, as notícias que nos chegavam de outros países davam conta de franco atiradores, entrando em escolas, supermercados e espetáculos musicais, provocando mortes e ferindo centenas. Agora, somos assaltados pelas notícias de matadores de criança em escolas, aumento exponencial do feminicídio, aumento das guerras de facções do tráfico, com mortes a cada dia em maior número. A humanidade ficou doente, abriu mão do humanismo primordial, feito da pureza das crianças, com sua imaginação simbólica feita de sons e cores que lhe cercam de proteção e afeto. Deste modo, tendo a acreditar que o pecado original está engatilhado para levar a humanidade ao suicídio, apressando a sua derrocada definitiva. Precisamos urgentemente resgatar o humanismo e sua capacidade de nos elevar acima do chão.

Ninguém fica para semente, diz a sabedoria popular. Porém, pessoas não morrem. Pessoas não são depositadas na terra, ou em suas cinzas, mesmo que sejam jogadas no ar. Pessoas não sofrem a impermanência do corpo, que, decrépito, se rende às condições das intempéries. O que permanece é o tanto de humanidade desenvolvido ao longo da nossa vida, o que nos faz pessoa é duradouro na experiência dos que seguem vivos, mesmo depois que o corpo se extingue. E aí, então, e apenas desse modo ficamos para semente. Se boa para frutificar vai depender do esforço que fizemos para não destruir os genes humanos que herdamos de nossos pais e avós. Precisamos com urgência resgatar o humanismo, tanto nas pequenas relações afetivas do cotidiano, quanto nas grandes transações diplomáticas e econômicas. De outro modo, corremos o risco de não apenas perdermos as condições de vida no ambiente natural que se degrada pelos atos humanos levianos, mas também nos vejamos igualados às condições dos demais seres vivos desprovidos de racionalidade. Talvez seja esse o pecado original, que retira os humanos do paraíso e os condena a aridez do deserto. Acredito que, assim como o Planeta está dando sinais de reação ao modus operandi dos humanos sem consciência, a soma de cotas de humanidade, que ainda resta, sobrevive, resiste à tentação ao mergulho nas platitudes do senso comum. Há uma saída para a salvação da espécie e da sua bela Morada.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

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8 Comentários

  1. Fica a questão. Por que escrever um texto exaltando a necessidade da correção das ‘pequenas relações afetivas do cotidiano’ e das ‘grandes transações diplomáticas e econômicas’? Exaltação da propria virtude? Sim, porque um texto e nada tem o mesmo efeito. Zero. O J’accuse de Zola modificou alguma coisa. Mas foi em 1898. E a grande maioria não lembra mais disto. Por que não está interessada.

  2. Imitando o Suricato. Meu trisavo casou noutro estado da federação. Um dos cunhados morreu de sifilis. Uma cunhada morreu de tuberculose. Outro cunhado, inicio do século XX, era condutor de bonde, motorneiro, no Rio de Janeiro. O primeiro filho morreu com perto de 4 anos de tuberculose. A filha nascida depois morreu de um tipo de bronquite com pouco mais de um ano. A filha seguinte também faleceu com pouco mais de um ano, tuberculose. O quarto filho sobreviveu. Ninguém mais sabe da existencia deste povo, simplesmente não interessa. Levantar arvore genealogica é para quem tem tempo, interesse e estomago. Há que se ler muito atestado de obito. Qual o busilis? Ninguem tinha a preocupação classe media alta enfastiada que se preocupa com a preservação do ‘humanismo’.

  3. Mudanças climaticas virão. O que se ve por enquanto são eventos extremos. Apesar do fuzuê, as medidas virão em ritmo mais lento que o necessário. Para o bem e para o mal, mudanças bruscas trazem problemas também.

  4. Matadores de crianças em escolas são pessoas com problemas psiquiatricos. Feminicidas idem. Porém são exceções, são o copo meio vazio. A grande maioria das crianças frequenta diariamente escolas sem problemas além da infraestrutura deficiente e dos professores despreparados. A maior causa de obito entre as mulheres é a neoplasia. Alguém preocupado com isto? Não, o noticiario esta mais preocupado com o feminicidio.

  5. Postulado cientifico é uma verdade basica aceita por todos e que dispensa demonstração. Dois pontos definem uma reta na geometria Euclidiana. Não vi postulado ser negado. O que se viu foram miltancias ignorantes num debate estéril sobre a planicidade ou curvatura do planeta. Alas, pessoal das letras, do direito, da sociologia, do jornalismo, não têm formação cientifica nenhuma além do ensino médio. Alas, o que se ve é o rebaixamento do nivel do debate para que a massa ignara possa ‘participar’.

  6. O que é ‘cultura do ódio’? O que a Manoela D’Avila e o Felipe Neto dizem que é? Quem diz o que é falsidade, mentira e inverdade? O mesmo pessoal? E o discurso ‘somos os bonzões, julgadores da “humanidade” e o que falamos é o que vale’ vem da falta de capacidade cognitiva? Sim, porque depois que aniquilarem os cavalistas quem serão as proximas vitimas do ‘expurgo’?

  7. Todos nascem humanos, não com uma ‘cota de humanidade’. Inclusive todos os que nasceram antes. Adolfo, Stalin, Pol Pot, Mao, Genghis Khan. ‘Humanidade’ não é um conceito de livro texto na academia, é o que se ve na rua.

  8. Hummm…. Humanismo, como ‘democracia’, não tem um conceito só. Humanismo cristão, humanismo ético, humanismo cientifico, humanismo secular, humanismo marxista e, ultimamente, humanismo digital.

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