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Doce e vazia – por Bianca Zasso

O jornalista Marcello Rubini mora em Roma, é um homem com uma vida social invejável e que vive cercado de belas mulheres. Mas isso parece não bastar. As festas e as orgias regadas a champanhe são tediosas, a relação com seu pai é um encontro entre estranhos e mesmo a barulheira da noite romana causam um vazio sem fim.

Esta descrição parece uma série de anotações feitas por um analista mas é a definição do protagonista de um dos mais belos e inquietantes filmes já feitos. A doce vida, lançado em 1960, é um retrato mágico da alta sociedade italiana conduzido por Federico Fellini, um dos maiores e mais criativos diretores do cinema mundial.

O personagem vivido por Marcello Mastroianni é o fio condutor de uma história que, apesar de ter sido filmada em preto e branco, tem “cores fortes”, sentimentos profundos e incompreendidos. Rubini é um jornalista que odeia seu emprego, que se resume a correr atrás de artistas escandalosos e acontecimentos sensacionalistas, como na sequência em que um verdadeiro arsenal midiático é montado para registrar um falso milagre envolvendo três crianças.

Fica claro desde os primeiros minutos que tudo não passa de uma brincadeira para chamar a atenção e vender jornais. Mas a construção é tão bem engendrada que mesmo o público, que sabe da verdade, se vê inebriado e ansioso por presenciar algo divino na tela. Seria uma forma de preencher o tédio de nossas vidas dentro da sala escura? Por que não, já que não há como não pensar na própria vida ao vermos Rubini tocar seus dias de farra com olhar perdido.

O desânimo crônico de Rubini contrasta com a jovialidade aventureira de seu fiel companheiro de pautas, o fotógrafo Paparazzo. O nome do personagem acabou batizando os profissionais das lentes especialistas em flagras de celebridades, num dos mais belos momentos em que a vida imita a arte.

Ser rico, paparicado e rebelde sem ter que se preocupar com as consequências parece ser o sonho de muitos. No caso dos cinéfilos, um banho sensual na Fontana Di Trevi, ao estilo do vivido por Rubini e a aspirante a atriz Sylvia, interpretada por uma linda Anita Ekberg, também está incluído na lista de pequenas felicidades. Caso se realizem, a vida será mais doce. Mas não menos vazia.

A doce vida é uma aula para pessoas que acreditam que basta satisfazer nossos desejos para sermos felizes.  E quando não há mais desejos para serem realizados? Será que ter tudo que se quer nos faz completos? Será que vale a pena ser completo ou a vida só tem graça quando falta um pedaço, seja de pano ou de amor?

A doce vida é um grande filme não só por seu tema universal, mas também porque marca o rompimento de Federico Fellini com o movimento do neorrealismo italiano, termo criado pela crítica italiana no início da década de 40 para batizar o cinema que se valia de cenas do cotidiano do pós-guerra, utilizando atores não profissionais e cenários reais.

As histórias de pobreza numa Itália destruída pelos conflitos armados dá lugar a vidas insólitas contadas com um pé na fantasia.  Fellini assume com plenitude seu realismo mágico em cenas barrocas, como a que abre A doce vida, onde vemos uma imagem de Jesus Cristo sendo carregada por um helicóptero pelos céus de Roma. O Senhor está vendo todos os nossos pecados. Inclusive o do tédio por não saber mais onde exagerar.

Apesar de se valer do insólito na abertura de seu longa, Fellini encerra a trajetória de Rubini com uma cena simples, onde uma menina não consegue conversar com o jornalista numa praia por conta do forte barulho das ondas do mar. É a incomunicabilidade entre as pessoas, tão presente na obra de outro grande cineasta italiano, Michelangelo Antonioni, que fecha o filme de Fellini. Uma cena doce, porém não menos vazia que os dias de Rubini.

A doce vida (La dolce vita)

Ano: 1960

Direção: Federico Fellini

Disponível em DVD

 

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