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Carta da província – por Atílio Alencar

Dia desses, ao abrir um dos tantos links que volta e meia nos levam a textos interessantes, me deparei com a fala de uma jovem escritora gaúcha, porto-alegrense ou ao menos radicada na capital do estado, que tecia comentários não muito elogiosos às cidades do interior. Melhor dizendo, era um comentário sobre a opacidade de lugares como Santa Maria, sobre a ausência de identidade material daqui, como em tantas – ou todas – as outras cidades interioranas, desprovidas de charme arquitetônico e historicidade aparente (pelo menos foi isso que entendi da fala da moça).

Minha primeira reação, lembro, foi francamente bairrista: tratei logo de resgatar mentalmente os atrativos visuais de Santa Maria, depois revisitei em lembrança um punhado de outras cidades que conheço, rememorei passeios por ruas muito bonitas, e para coroar meu ressentimento com a autora do comentário, sorri satisfeito por nem sequer ter lido um livro seu, nem nunca haver me deparado com uma resenha favorável que me inspirasse a fazê-lo.

Claro, isso tudo foi no calor da primeira antipatia, mais confuso e contrariado que convicto quanto aos meus contrapontos. Depois, aos poucos, fui percebendo que estava apenas exercendo meu quinhão de provincianismo, reforçando as barreiras entre o ‘nós, que vivemos aqui’ contra a petulância invasiva dos estrangeiros (como se não fôssemos, eu entre tantos, também estrangeiros ancorados na Boca do Monte).

Entretanto, feita a necessária alusão ao bairrismo vingativo em que por vezes incorremos, acho importante prestar atenção em algumas recorrências, essas sim cronicamente provincianas, que insistem em estabelecer fronteiras culturais bastante arbitrárias entre Porto Alegre e as cidades do interior.

Alguém já disse que ‘não há nada mais provinciano do que o desejo de abandonar a província’, e eu não subestimaria a precisão dessa frase. De modo complementar, eu diria também que ao abandonarmos a província, a levamos conosco para onde quer que a gente vá. Pois eu não vejo senão a denúncia de certo receio em parecer caipira, quando um morador ou moradora das grandes cidades sente a necessidade de se pronunciar pejorativamente em relação às particularidades do interior.

Está claro que a vida nos grandes centros urbanos tem suas compensações ou arremedos de satisfação em meio ao caos cotidiano. Há os bares, restaurantes, cinemas, parques etcétera, para onde se pode fugir depois de mais um dia de rotina massacrante que torna a distância de poucos quilômetros um obstáculo de difícil e lenta transposição, a ser cumprido dentro de um ônibus ou do metrô abarrotado se você é trabalhador – e quem sabe no prolongamento da noite quantos prazeres nos reservam os bairros boêmios, embora a preços altos.

Por certo que a história e o bom senso podem ter preservado vestígios de uma arquitetura exuberante em meio a profusão de placas e luminosos que ofuscam as estrelas, nem que seja a fachada charmosa de um sobrado sobrevivente à onipresença dos shopping centers e lojas de departamentos. Talvez a variedade de oferta, as livrarias onde se pode comprar livros que leremos nos intervalos escassos da labuta, ou os cardápios saborosos que mastigaremos depressa entre uma e outra ligação ao telefone ou publicação na Internet (hoje se nossa privacidade não é exposta ao mundo nos sentimos solitários e rejeitados).

E aos poucos, pensando na tal opacidade a que se refere a jovem escritora, meu primeiro impulso de lhe escrever uma réplica foi sendo tristemente substituído pela constatação de que as vantagens da vida no interior, que eu pretendia esfregar-lhe na cara como prova da imensa fortuna que é não viver numa capital, elas estão desaparecendo.

Adoraria dizer que Santa Maria e outras tantas cidades não tão pequenas são o avesso perfeito de Porto Alegre, mas já não posso. Não posso porque o projeto de cidade que hoje nos vendem é igual em todos os lugares, com sutis variações de opacidade, mas todas muito sem graça, pensadas para o comércio e para os carros, nunca para as pessoas.

Então que percebi que a moça estava certa, embora certa por motivos alheios à sua percepção: onde ela viu feiúra, achou um contraste, porque via com os olhos nostálgicos de quem não percebeu que capital e interior se igualam no mesmo plano de enfeiamento.

Sorte da escritora pretensiosa, que não vê que nesses tempos opacos só a tristeza é cosmopolita.

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