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Som de rádio de pilha – por Márcio Grings

Em 1976, Neil registrou mostrou ao mundo “Will To Love”, uma canção acústica que fazia parte do lado B de “America Stars ‘N Bars”. O tema foi gravado num gravador Sony, na sala do seu rancho, em frente à lareira. E foi assim que o músico colocou a música no mundo, como uma maldita demo. Dá pra ouvir o crepitar da lenha ardendo no fogo.

Partindo do princípio que desde aquela época, Neil poderia gravar no estúdio que quisesse, para muitos essa escolha pode parecer um retrocesso. Quase trinta anos depois ele faz algo tão ousado e despretensioso, ainda mais se tratando de um artista que não precisa provar absolutamente mais nada pra ninguém. E lá vem o Velho Neil, o Rei da autossabotagem, a beira dos 70 anos, novamente a nos surpreender com algo totalmente insperado.

Se você é um daqueles caras fissurados em música digital, CDs e o escambau, som sem chiados e com alta definição, gosta de sonoridades assépticas como trilha sonora de propaganda de cartão de crédito, então meu caro, definitivamente esqueça o novo álbum de Neil Young. O músico canadense lança do dia 25 de maio “A Letter Home”, uma leva de releituras capturadas na cabine de gravação da Third Man Records, gravadora de Jack White.

O disco vazou na internet essa semana. Em primeiro lugar, a geringonça que registrou o trabalho, o Voice-o-Graph é um trumbisco fabricado em 1947, e esse equipamento possibilita a gravação de vinil de seis polegadas. Quando Jack White lançou a cabine ano passado – um pouco antes da Record Store Day – o guitarrista e empresário anunciou parte do protocolo de gravação. Após o registro, o músico poderia depositar o envelope com o disco em uma caixa de correio localizada do lado de fora da loja. Objetivo: enviar sua mensagem a alguém.

E Neil entrou no espírito da brincadeira de Jack. A começar pelo nome do disco e pelos recados para a falecida Mamãe Young. O resultado final de “A Letter Home” soa como um conjunto de canções registradas num antigo gravador. Parece que a matéria prima foi embalada numa fita cassete abafada, onde ouvimos uma porrada de chiados, cortes abruptos ao final de cada música, rotação que parece dar uma rateadas e aquele som médio predominante (onde graves e agudos inexistem). Se você curte os discos antigos de blues e música country, o jogo está ganho. Som de rádio de pilha. Tomei meia garrafa de Jack Daniel’s ouvindo o disco. Três vezes seguidas.

Quanto ao repertório, em suas releituras, munido de violão e gaita de boca (eventualmente de um piano), Neil acerta o alvo na maioria das vezes. Começamos por onde a coisa não rolou: “On The Road Again” de Willie Nelson é a bola fora do disco. Momento churrasco com Jack White azucrinando nas teclas. “Crazy”, uma música que até Julio Iglesias já gravou, também soa deslocada no contexto da obra.

Ele começa a encontrar uma direção na versão devotada de “Girl From North Country” de Bob Dylan e “Reason To Believe”, um dos clássicos do folkeiro “junkie” Tim Hardin em versão voz, piano e harmônica. No entanto, acerta a mão valendo em canções como a melancólica “Changes” de Phil Ochs. “Needle To Death” de Bert Jansch, primeira faixa revelada do trabalho, ganhou um vídeo caseiro bem bacana.

Muito bonitas as versões de “Early Morning Rain” e na candidata a uma das melhores do álbum “If You Could Only Read My Mind” (dois temas de Gordon Lightfoot), onde Neil as interpreta de uma forma que as composições parecem serem escritas por ele, e para ele. “My Hometown”, número que encerra o multiplatinado “Born In The USA”, de Bruce Springsteen, é sem dúvida outro dos melhores momentos do álbum e “Since I Met You Baby” de Ivory Joe Hunter nos leva a um empoeirado saloon do velho oeste, onde um pianista bêbado parece tocar seu piano de parede com um copo de uísque quase despencando pela borda do instrumento.

“A Letter Home” encerra com “I Wonder If I Care As Much”, uma canção dos Everly Brothers que cai como uma luva para a voz de Neil, e ainda conta com o forcinha de Jack nos backings. Bonito mesmo. Que disco! Esse já está no topo da minha lista dos melhores de 2014.

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