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Lembrança da encrenca – por Atílio Alencar

Cachoeira do Sul, a cidade onde nasci, é um caso exemplar da falência de certos setores da agricultura, que, quando ruíram, deixaram um rastro de decadência econômica e simbólica considerável. Das famílias proprietárias de grandes extensões de terra cultivadas segundo a lógica da monocultura, muitas hoje ostentam apenas o sobrenome como signo de um passado aristocrático.

Mas há particularidades interessantes em Cachoeira, comuna que se estende junto às margens do Rio Jacuí. Justamente pela interrupção no progresso econômico e pela situação de relativo isolamento rodoviário – a cidade está situada num ponto equidistante entre duas grande rodovias do Rio Grande do Sul, sem, no entanto, configurar um ponto obrigatório de passagem destas rotas -, o município causa uma impressão de estagnação temporal.

Alguns traços culturais de inconfundível sabor local persistem ao longo da imobilidade dos tempos, à revelia da indiferença ou paixão da população. Destes, uma das lembranças mais fortes que guardo, ainda dos tempos da infância, é a figura de um simpático senhor de azul brandindo uma espécie de triângulo metálico, tal qual aqueles que as novelas de tevê me fizeram crer como sendo exclusivos da cultura popular nordestina.

O que este senhor fazia – e conforme descobri recentemente, ainda faz – ao espalhar sua estridência pelas ruas de Cachoeira, era divulgar o comércio de uma massa doce e levíssima chamada encrenca. A guloseima, que fazia enorme sucesso entre a criançada, era transportada num tubo vermelho de metal agarrado às costas do vendedor, de onde ele tirava aquele mistério crocante, cujos detalhes da fabricação nunca sequer suspeitei.

Tudo o que eu sempre soube sobre a encrenca se resumia, até há pouco, a isso: a aparição lúdica de um senhor vindo não sei de onde com suas notas de metal, espécie de anunciação azul de um doce barato e inigualável, que se confunde com a minha própria ideia de infância.

Foi só por conta destes encontros inesperados que as redes sociais nos propiciam que descobri que a encrenca não era, aparentemente, uma exclusividade da minha infância cachoeirense. Andei ouvindo que há similares em Porto Alegre, e também no interior do Paraná e em alguns estados do Nordeste e do Norte.

E num passeio breve pelas ruas da minha infância, dia desses, acabei trombando com o Seu Tarzã, um dos ambulantes que dão continuidade à tradição encrenqueira. Parei o homem, proseamos um pouco, comprei-lhe uma encrenca: o mesmo gosto, ainda o preço pagável com alguns níqueis.

Só não tive coragem de fazer as perguntas que tanto intrigaram minha imaginação de criança: em que fábrica mágica se produz a encrenca, de que tipo de sonho se produz sua massa e doçura?

Preferi manter intocado este segredo, em nome de resguardar também um pedaço da minha criancice.

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Um Comentário

  1. Viagem no tempo, em uma cidade que não morei, sobre uma guloseima que não provei, mas que me reporta à infância que tive, com a doçura de uma época que vivi! Emocionante e arrepiante! Parabéns, Seu Atílio! Espero que continues nos brindando eternamente com essas preciosidades!Beijo grande!

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