Meu mestre analfabeto – por Atílio Alencar
Meu primeiro contato com aquilo que, mais tarde, seria uma espécie de vício insuperável, foi ainda gurizote, bem antes da idade escolar. Morava ao lado da casa dos meus avós paternos, e por conta da afinidade guardada com o velho pai de meu pai, passava horas a fio seguindo os passos dos dois pela casa, ou simplesmente ouvindo junto a eles a voz solene que brotava do rádio de madeira.
A casa de madeira rosada era atraente não só pelo afeto que me unia ao vô e à vó. É que o pátio dos fundos, igual em tamanho ao da casa dos meus pais, continha em suas modestas dimensões um universo cheio de hipnóticos mistérios para a criança que eu era: o forno de pedra onde minha avó assava seus pães da cor do ouro queimado; o galinheiro, onde colhíamos os ovos ainda mornos do calor uterino das galinhas poedeiras; as raposas que assaltavam, na calada da noite, o cercado das aves, quase sem deixar rastro que não o pânico amanhecido das galinhas sobreviventes; a variedade de árvores que cobriam o chão de grossas raízes e o céu com infinitas folhas (que eu me lembre: pé de café, pé de laranja-de-umbigo, pé de laranja-do-céu, limoeiro, bergamoteira, figueira, butiazeiro, pitangueira, bananeira, e talvez só).
Mas o principal motivo da minha vontade de permanecer naquela casa era outro.
Meu avô Alcides, um velho marceneiro que migrara do campo para a cidade no êxodo, um senhor semianalfabeto e de austeridade asmática, era também um fascinante contador de histórias. Se minha mãe me ensinou as letras, o velho me encantou com o sabor dos causos e da fantasia.
Quando ele sentava sob o pé das laranjas miúdas, ou no intervalo das lides com as toras de madeira por cortar, costumava desfiar longas narrativas, amiúde aludindo aos mesmos episódios, mas sem jamais desperdiçar o ponto de arrebatamento de uma história.
Tinha um jeito raro de moldar o barro das palavras, até dar-lhes a forma final de um susto, da dúvida ou de um sorriso.
Foi através da sua lábia que eu li o realismo fantástico pela primeira vez. E também a figura do bandoleiro, do gaúcho originário da solidão dos campos, foi ele quem me desenhou com palavras.
Me contou da criatura metade-cachorro, metade-homem que rondava os atalhos e pinguelas; das bruxas que trançavam as crinas dos cavalos nas noites de lua cheia; da geada que sabia matar os vícios da terra; e dos assassinos fugidos que pernoitavam sob o protesto dos cães antes de seguirem sua sina agourenta.
Era como ler um livro sem folhear página sequer. Bastava esperar o chiado da asma dar uma trégua, que o Alcides resgatava o imemorial da vida no campo com a calma e a consistência de uma miragem.
A literatura começou assim para mim; e só depois vieram Érico Veríssimo, García-Márquez, Borges, os gregos e os romanos.
Mas ainda acho que meu vô Alcides, dada a pouca instrução e o frio que fazia na tardes de junho naquele pátio sombrio, contava histórias melhor do que eles.
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