O vaso de flores – por Márcio Grings
O pequeno caminhão de mudança levou pouco mais de uma hora pra chegar até seu destino. Sem dúvidas, a menina deixou para trás um pedaço de si. O jardim da infância, o coleginho onde ela foi alfabetizada, as lembranças de uma cabecinha ainda muito jovem, que descobriu o mundo naquele agora distante lugarejo. Os aromas, os matizes, a luminosidade verdejante que espreita a estrada de chão batido, o pequeno córrego onde aprisionava grilos e girinos dentro de vidros de café solúvel, as brincadeiras com as amigas, uma casa que mesmo no âmbito conturbado pelas confusões familiares, era seu verdadeiro lar.
Agora, definitivamente o verde foi trocado pelo cinza. Agora era ela, o pai e os avós paternos numa cidade maior. Cinza. Tudo diferente, novo, assustador. Os homens da mudança começam a descarregar a mobília. Enquanto a garotinha guarda a mochila no seu novo quarto, observa pela janela o mamoeiro repleto de frutos. Um pardal espia a criança enquanto faz malabarismos na veneziana.
“Olha o passarinho fazendo pose pra ti, Fernanda”, diz a avó.
“Eu já vi, vó!”, respondeu a menina sem esboçar um traço de sorriso.
CRASH!
Um dos caras da mudança derruba um antigo vaso de cerâmica e o objeto se espatifa em dezenas de pedaços. A garota não se contém. Ela começa a chorar e se atira de bruços num colchonete no chão. O mesmo vaso onde ela e a avó depositavam as flores colhidas na viela que dava acesso à entrada da casa onde moravam. A guria chora copiosamente, soluça e lava o rosto com lágrimas. Era como se o seu próprio coração também estivesse se espatifado no piso de cerâmica.
A avó a consola dizendo que irá comprar outro vaso.
“Vó, eu quero o nosso vaso. Não quero nenhum outro”, reclama Fernanda em um tom choroso e com os olhinhos brilhantes e aquosos.
Dentro dela, aquilo representava um presságio de que nada seria fácil naquela nova morada. Um mente precoce que em pouco mais de dez anos de vida já havia vivenciado tantas rupturas e experiências traumáticas, que possuía a capacidade de interpretar mensagens subliminares encapsuladas no instantâneo de pequenos incidente.
“Vão-se os anéis e ficam os dedos, querida”, consola a avó acariciando o rosto corado da neta.
Nenhuma palavra ou frase feita irá acalentar a menina. Ela senta num canto do futuro quarto, tira um caderno de dentro da mochila, puxa um lápis de cor do estojo e começa a materializar a lembrança do vaso no papel. Guardaria aquele desenho por muitos anos, como símbolo de uma época que nunca mais voltaria. Ainda hoje, passados tanto tempo, mantém fresca a lembrança do vaso em cima da velha mesa de madeira. Gostava de ver o sol entrecortando as flores com seus raios coloridos. Via tudo do sofá da sala, acariciando o gato enquanto a avó preparava o almoço. Toda vez que quebra algo, lembra no ato daquele dia. Um recado que nada desse mundo de fato a pertence. Tudo é provisório e impermanente.
Muito bom, Márcio. Baita texto. Parabéns.