Apagão na democracia – por Atílio Alencar
O Brasil perdeu a Copa, como todo mundo está cansado de saber. E não foi qualquer derrota: a despedida da seleção brasileira do Campeonato Mundial organizado pela FIFA e sediado em nosso país foi de tal maneira melancólica, que parece necessário revisar toda a mitologia construída em torno da camisa amarela.
Mas a derrota do Brasil já era prevista por muitos – senão dentro de campo, em outras instâncias da vida social. A apropriação por parte de setores de oposição ao governo federal da derrota esportiva e a tentativa de converter a eliminação em votos é, claro, fraudulenta e oportunista. Assim como a campanha promovida por grandes veículos midiáticos, profetizando o caos e a e vergonha nacional diante dos civilizados visitantes, como se fôssemos um povo fadado ao desconcerto a cada reencontro com nossos invasores europeus.
Mas mesmo isso é também um efeito da estupidez induzida em larga escala, que quis confundir, no sucesso ou na desgraça, as expectativas futebolísticas com o futuro do Brasil e dos seus cidadãos. Imagens de crianças brasileiras chorando no estádio e nas ruas correram o país em capas de jornal e longas reportagens na tevê, como se a goleada alemã encarnasse a maior, a mais impensável tragédia que nunca poderíamos imaginar como nação.
Mas era só futebol, no fim. Quem jogou, ganhando ou perdendo, segue rendendo milhões para a indústria que organiza e se alimenta de um esporte de intenso apelo passional, e ganhando também o seu por desfilar na constelação dos maiorais do futebol mundial.
A verdadeira tragédia que a Copa nos legou, esta sim de dar vergonha para brasileiros diante de qualquer povo do mundo, começou bem antes das chuteiras pisarem os gramados. Há anos os comitês populares vinham denunciando os procedimentos de “higienização urbana”, movidos pelos interesses imobiliários em franca associação com os poderes municipais, estaduais e federal.
Meses antes do campeonato, a intensificação das medidas de “pacificação” (pergunte o real significado da palavra para um preto pobre e favelado) alcançou seu ápice no assassinato de Amarildo, que deu nome às milhares de vítimas que a polícia trata como quer na escuridão da quebrada. O livre direito à manifestação suscitou a ideia, bastante simpática para muitos políticos de direita e de esquerda, de se formular uma “Lei Antiterrorismo” – que, claro, serviria para criminalizar as dissonâncias.
Não satisfeitos em limpar a área antes da Copa (alguns ainda conseguem achar graça das manifestações esvaziadas em junho e julho deste ano; eu já acho é que cem pessoas com coragem suficiente para enfrentar a truculência armada da polícia e insuflada pela mídia é um número surpreendentemente alto), mal o juiz apitou o final do torneio e as delegações rumaram para casa, o pau continuou comendo contra ativistas, desta vez com requintes de crueldade: a “prisão preventiva” decretada contra 23 pessoas, culpadas pelo Tribunal da Rede Globo e das Vejas da vida por formação de quadrilha, entra para a história como um autêntico apagão da democracia brasileira.
Se a derrota em campo deixará suas sequelas, disso pode-se até extrair algum saldo positivo. Vai que – e eu bem sei que meu otimismo é infundado – a quebra do encanto da seleção canarinho abra as portas para algum tipo de reforma, que comece, por exemplo, a devassar a corrupção crônica da entidade-mãe CBF. Já o que nos sobrou nas ruas, o efeito terrível que nenhum chocolate em campo pode igualar, é a naturalização de um modo de operar do Estado em relação à liberdade de expressão simplesmente medonho.
Pode até não ser uma ditadura, mas pra democracia também não serve isto que aí está acontecendo.
O direito a manifestação evidentemente é essencial e tem que ser respeitado, mas os manifestantes que fazem baderna devem ser punidos, um direito sempre implica em uma obrigação. Manifestar sim, bagunçar não. Não se pode distorcer a realidade só para justificar atos de vandalismos.