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Mesmo que nenhum lugar se chame Macondo – por Atílio Alencar

Dizem que 2014, este ano que tem gostado de levar embora tantos amigos que os livros nos deram, é o ano da morte de García-Márquez. Dizem também – e não teríamos motivos para duvidar, caso não gostássemos de atribuir ao escritor colombiano uma perícia igual a do cigano Melquíades para tapear a morte – que o velho já não atinava bem das ideias de uns tempos pra cá: esquecia nomes, confundia as feições de amigos e parentes, andava mais desbocado que o habitual, como que emboscado por uma das tantas febres a que submetera suas personagens, para debochar da ordem corriqueira das coisas.

Teria pago assim com a perda da já inútil razão por ter feito pouco caso da sanidade do mundo – e pelo disparate de haver mostrado que este mundo cabe, com todas as suas dores e delícias, numa aldeiazinha de nome aborígene, bem distante do mar.

Inventar um rincão que sabe guardar o mundaréu não foi, por certo, o gesto mais original de García-Márquez. Outros tantos antes dele o fizeram, e alguns vizinhos seus de século e continente lhe ensinaram muito bem a lição, quando o carimbo do Realismo Fantástico ainda não havia sido incorporado pelos europeus como a senha invariável para a ‘exótica’ (segundo eles, não nós) literatura sul-americana.

Acontece que Macondo foi além, e sem sair do lugar, veio dar o ar da graça nos dias de hoje: seu excesso e sua escassez de realidade, a releitura em versão pirata dos mitos bíblicos, a teimosa repetição de nomes e humores ao longo de uma linhagem incestuosa, a epopeia de ponta-cabeça dos retirantes que deram nome à comunazinha; tudo que teve lugar ali impregnou muito mais do que um estilo literário, mas sim o próprio imaginário de quem – e somos muitos! – não acredita que a História da América Latina se possa contar com amparo na lógica do dois mais dois igual a etcétera.

Avista-se Macondo desde qualquer janela aberta no continente, embora nenhum cartógrafo a faça constar nos mapas oficiais. Basta aspirar o cheiro do zorrilho numa estrada de província, ou cruzar com as tábuas descascadas que menos indicam caminhos do que os confundem – ou em dias de aguaceiro, ao atolar os pés na nata escura do lodo das estradinhas que levam ali, onde os Zés Buendías recostados ao balcão da bodega afogam a centenária solidão das estirpes condenadas.

Em cada quilombo, uma Macondo.

Claro que Macondo pode muito bem cheirar a asfalto, nos dias de hoje: o lodo se transmuta em piche para urbanizar os desacatos que o povo da aldeia comete contra as linhas retas, os sonhos mofos, o progresso sem tato das máquinas de carne ou metal. Macondo sobrevive então no alvoroço de uma praça em hora imprópria, no atrevimento com que as crianças guarany fazem da calçada seu quinhão retomado de floresta, na desobediência civil em versos dos MC’s, na mágica improvisada de fazer brotar poesia bruta dos muros.

A antropofagia em estado puro dos que comem a sabedoria do outro para matar a fome de ser outros, e não para matar alguém, é também um atalho para Macondo.

A aldeia resiste. A Macondo sem cabresto se atualiza nas marchas por direitos, nas ocupações, nos gestos clandestinos que recusam a prata miserável com a qual nos querem comprar a ternura; também nas cidades que duram a fagulha de uma paixão. Assim que a aldeia resiste em todas as línguas do mundo. Seu nome pode ser eventualmente esquecido durante um longo período de insônia, amassado por golpes de cinismo, soprado pelos ventos da infâmia. Mas não pode morrer: está ali, pronto para renascer no céu da boca como uma estrela intermitente.

Disseram que García-Márquez, o homem que nos ensinou o caminho até Macondo, morreu neste ano de 2014. Não acreditem nisso. Um homem que se deixa conduzir de mãos dadas com a própria poesia, só pode estar vivo em todo lugar. Mesmo que nenhum lugar se chame Macondo.

*Texto originalmente publicado na Revista O Viés.

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