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Ainda vai levar algum tempo – por Márcio Grings

O som ressoa envolvendo todos os sentidos / De tudo que já foi criado / Todas as combinações se sucedem / Sem fim, como antes”.

William Burroughs

A Feiticeira atravessou o pátio, caminhou por entre os juncos e adentrou até o fundo de uma alameda adornada por musgos e samambaias gigantes. Lá, cuidadosamente amputou uma orquídea da planta em que florescera. Ajustou a flor nos cabelos atrás da orelha direita. Retornou serenamente pelo mesmo caminho. Ao cruzar por mim, acenou positivamente com a cabeça e esboçou um sorriso. Foi até onde estava a fogueira, abriu uma pequena bolsa de couro amarrada a sua cintura e jogou as semillas de la Virgem num caldeirão com água fervente. Adicionou mais algumas raízes, e cerca de trinta minutos depois, cuidadosamente despejou o líquido morno dentro de vários vasilhames.

Tarde fria de inverno. Instrumentos de percussão rufavam em harmonia com o vento e as nuvens. Direto do céu um gavião dá sinal de vida. O animal sobrevoa nossas cabeças como um atento espectador. Passado um tempo, uma mulher de vestido longo e panos esvoaçantes passa uma garrafa de barro com o resultado proveniente do processo, distribuindo o líquido resfriado em várias doses para cerca de umas trinta pessoas. A cada taça servida, um novo sorriso para o futuro viajante. Enquanto isso, a Feiticeira profere orações numa espécie de língua morta.

Ao beber a minha dose, escoro meu corpo próximo a uma pedra gigante e fecho os olhos. A cada minuto que tiquetaqueia dentro de mim, mais relaxado eu fico. A sensação tempo/espaço vai se alterando aos poucos. Devo ter dormido ou foi um sonho? As duas coisas, quem sabe. Começo a me sentir cada vez mais voltado para dentro, uma introjeção voluntária. Tenho a impressão de estar me banhando em águas mornas, uma correnteza invisível que circula pela minha pele e eriça os pelos dos braços. Bem na minha frente, ouço a lenha crepitando harmoniosamente no fogo. Sinto o cheiro de algum capim ou erva queimando, um aroma agradável, ancestral. A cada estalo, levemente estremeço. Uma voz vinda de algum lugar sopra uma missiva: “encontra-te a ti mesmo”. Como um mantra, a frase vem e vai o tempo todo. É quando sinto uma espécie de abraço gigantesco que me envolve totalmente o corpo. Lágrimas escorrem do meu rosto.

A pressão diminui e a matéria parece flutuar. Ainda com os olhos fechados, flashes lentamente começam a surgir dentro de mim. Aos poucos, aquele filme acelera. E como se um espírito mesfistófelo estivesse no comando, tudo fica muito rápido. Estranho e tenso. Visões perturbadoras coreografam na tela interna numa espécie de sequência de slides em modo acelerado.

Minha cabeça é sacudida.

Abro os olhos. Eu ainda estou ali, no mesmo lugar. Fecho os olhos (…) o trem fantasma recomeça sua viagem infernal. Mais tarde lembraria que quando tinha seis anos sentia medo de dormir com as luzes apagadas. E de repente, o mesmo rosto diabólico da infância me assombra novamente. Reconheço o filho-da-puta. É meu demônio de cabeceira. Choro pela segunda vez. Como um bebê chorão. Agora os murmúrios escapolem pela minha garganta. A besta ri alto. Eu peço pra sair.

Resolvo manter os olhos abertos. Procuro me recompor. Olho para a fogueira que agora ganha cores vivas e parece ainda mais quente e crepitante. A Feiticeira está em frente ao fogo, encarando fixamente uma menina sentada bem próxima à chama. Seus cabelos loiros parecem feitos de luz. A garota dança e sorri como se estivesse tomada por algo. O movimento dos braços e o sorriso aberto coreografam com graça. A Feiticeira olha pra ela, se aproxima e diz alguma coisa próxima ao seu ouvido. Seu corpo se contorce até que fique de cócoras. Vomita algumas vezes e também chora.

Eu resolvo levantar. Caminho até uma área arborizada próxima a clareira. Uma figueira gigantesca parece estender seus braços em minha direção. Eu abraço seus galhos e depois, em agradecimento, urino em suas raízes. A espuma da minha urina brilha como se fosse feita de algum líquido dourado. Por entre as brechas da vegetação, o sol irradia seus fachos e parece imantar aquele córrego com uma cor alaranjada. Olho para trás e vejo a Feiticeira se aproximando. Ela fuma um cachimbo. Aceno com a cabeça e ela retribui com um novo sorriso. Afasta-se novamente com passos muito lentos e firmes.

Eu, titubeante, volto à clareira onde estão as pessoas. O frio e o pôr-do-sol fazem com que todo o grupo se aglomere em volta da fogueira. A batucada rufa mais alta. Grande parte dos participantes começa a dançar. Eu permaneço imóvel. Tenho a impressão que minha alma ainda não começou sua migração. Não sei por que, mas silenciosamente choro pela terceira vez. Ninguém pode ouvir os meus murmúrios.

“Encontra-te a ti mesmo”, aquela voz de novo. “Vai ser difícil”, penso.

Ainda vai levar algum tempo. Ajeito minha manta em volta do pescoço e fico observando o fogo e os desenhos das chamas. Finalmente anoitece.

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