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Nada de novo no front – por Márcio Grings

Uma fresta de sol se insinua pelas brechas da veneziana. Abre os olhos ainda tentando compreender resquícios de sonhos das últimas horas. Tanta coisa sentida que fica tudo enevoado dentro dele. Lembra só do fiapo de um pesadelo que foi vivido há poucos segundos. A água estava invadindo sua casa. Ainda bem, era apenas um sonho. Em época de frio, joga todos os cobertores sobre a cama. Não era assim, tão friorento. Com o decorrer dos anos passou a sentir mais o efeito da estação nos ossos. Cruza o olhar pelo bidê e vê a garrafinha de Jack Daniels divando como um totem sobre a pilha de livros que ainda não foram lidos. Ela ficou ali, pronta para ser bebida, mas noite passada seus lábios não beijaram nenhum gargalo. Certas vezes acontece.

Sons do quintal. Ouve a movimentação dos pássaros e um dos gatos começa a miar. Levanta da cama, se veste e sai do quarto. Não sem antes desviar os olhos do seu clone refletido no corredor. Geralmente evita espelhos nesse horário. Abre a porta da cozinha e dá de cara com um baita dia sorrindo pra ele. Como uma promessa de coisa boa. A bicharada tá ali, esperando por ele, todos os dias. Alimenta a trupe e vai passar o seu café. É engraçado, nem gosta tanto assim de café. Mas o cheiro, hummmm… O aroma é a melhor parte. Manhãs sem cheiro de café incensando a casa deixam aquele recorte de tempo incompleto. Por isso, a cafeteira ronca diariamente para preparar apenas meia taça do líquido escuro.

Tira o guisado da geladeira e joga um punhado de carne moída dentro de um cacetinho.  Deixa a proteína nadando sobre a maionese e na outra face do pão adiciona tomate picado. Mais uma folha de alface e fecha o pacote. Joga o produto na torradeira. Em três minutinhos senta-se à mesa da cozinha e sem a mínima pressa bebe e devora sua refeição matutina.

Vai ao banheiro e escova os dentes. Abre a janela da sala e observa o violão emudecido sobre o sofá. Retirou as cordas na noite anterior. Em instantes vai trocar o encordoamento do pinho. Tem tocata no sábado. Antes de botar a mão na massa, resolve colocar água pra esquentar. Vai rolar um mate. Pra colorir as coisas, dispara uma musiquinha de gente grande. Ele acha que a vida sem verniz ou neon fica um pouco silenciosa e opaca demais. “American Beaty” do Grateful Dead gira no turntable. Pulou duas e meteu o som de sempre: faixa três do lado A.

Pãra-pã-pãra-papa-pá (…)

Sugar magnolia / blossoms blooming / heads all empty and I don’t care / Saw my baby down by the river / knew she’d have to come up soon for air”.

Ok, ele está numa fase de ouvir e sentir outras coisas. Mas um pouco (só um pouquinho de previsibilidade) não faz mal a ninguém. Esse é um tipo de tema que sempre funciona pra dar um START legal nas operações. Aquele papo de “When The Music’s Over” do Doors é a mais pura verdade. No fim das contas, sobra apenas ele e aquelas cançõezinhas que escolheu como trilha-sonora. Sim, a música é amiga íntima dele e há uma ‘brodagem’ inigualável pairando naquela sala. E não tão tem nada de triste nessa constatação.

Como a porta da cozinha estava entreaberta, a visitante das manhãs surge com pés de pano. É a gata cinza. Ela também evita o espelho. Como de costume, o bicho se acomoda no mocho em frente a porta. Uma expressão serena de contentamento se materializa no animal. Quando o frio parece dar um novo recado ao soprar por debaixo da abertura, cuidadosamente ele aconchega uma manta em volta do corpo da gata.

Pãra-pã-pãra-papa-pá (…) she’s got everything delightful / she’s got everything I need

Que riffzinho fodido de bom! Jerry, Bob, Phil, Mickey, Bill e Pigpen continuam fazendo estripulias pelo ar. A chaleira chia.

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