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Um texto de Pusich, do “Assembleia Literária” – por Elen Biguelini

Seguimos o texto da semana passada com a transcrição de um texto de Antónia Gertrudes Pusich. Uma obra que foi publicada no periódico “Assembleia Literária” em 1849, atualizada e arrumada para o português atual.

Dois Mistérios – Romance
O Canto Noturno

A sombra amena de uma noite de outono do ano de 1835 abrangia a nobre e opulenta cidade de Lisboa. O céu oferecia a nossos olhos o quadro maravilhoso da imensidade dos planetas, e estrelas fixas que douram seu lustroso manto azul! Uma suave brisa agitava brandamente os arvoredos, e extraia das flores o precioso aroma com que perfumava a terra! Nem uma nuvem ofusca o firmamento!

O sino do Convento Novo de SS. Coração de Jesus anuncia aos mortais que a noite há tocado em meio do seu giro!

O ruido das seges [carruagens], o trotar dos cavalos cessou! Cessou também a fúnebre vista dos finados cujos restos vão descansar no campo dos Prazeres, e que de continuo entristecem aqueles logras, levando aos vivos a memória fatal do seu inevitável termo!. Só de quando em quando as aves noturnas cruzando o cemitério dos ingleses, a grimpa das torres, e as ruinas do zimbório [abóbada] do Convento, com seus descompassados pios despertavam os ecos de solidão!.. Mas não eram só os ecos fúnebres das aves da morte que interrompiam aquele majestoso silencio! Um som menos rouco, um som triste, mas tão pungente, e interessante parecia comover os rochedos!.. Eu o ouvi, e o interesse que em minha alma despertou moveu o ardente desejo de sondar um arcano talvez impenetrável!

A voz de uma infeliz mulher se ouvia interrompida por íntimos ais!

Entoava uma canção harmoniosa onde a paixão respirava com toda a sua força!

A pequena distancia da praça do Convento Novo do SS. Coração de Jesus (vulgo [conhecido como] largo da Estrella) era situada uma simples casa cuja aparência não chamava a atenção do caminhante, mas onde a imaginação do poeta atentara se antever pudesse o quadro interessante que ali se oferecia!

Uma fraca luz tremulando deixava perceber através de uma janela meia aberta a cantora noturna, e misteriosa.

Era uma Senhora ainda jovem, ao que parecia, de forma regular, cujas feições não pude diferençar [diferenciar]; mas de cor alva, e cabelos pretos.

Assentada junto de uma banca ande tinha um tinteiro, papeis, e alguns livros, ela reclinava a face consternada em uma das mãos, e cantava com música sentimental os versos que pude decorar, porque mais de uma vez os ouvi, pronunciando com a verdadeira expressão do amor, e da aflição! Ei-los:

Quando no roxo horizonte
Nivea aurora desponta,
E o meigo canto das aves
Do sono te despertar;
Lembra-te que á mesma hora
Pensa em ti quem mais te adora!

Quando a planície gerares,
Quando subires ao monte,
Essa brisa que sentires
Voltear-te a airosa fronte,
Vai lavar-te o pensamento,
Despertar-te um sentimento!

Quando o perfume gozares
D’esse espinhoso rosal,
No botão que desabrocha
Vê retratado o meu mal!..
Um sentimento a florir…
Os receios a pungir!..

E quando mais pensativo
Buscares a solidão,
Quando as alturas levares,
A voz, a imaginação;
Lá no espaço as de encontrar
Meu pensamento a girar!

O canto que aos céus ergueres,
Que os anjos hão de entoar;
Inda que a amor não votares,
Ha de sempre amor soar…
Guarda então viva lembrança
De quem te ama, e sem esp’rança!..

Sem esp’rança, e sem ventura!..
Que em silencio há de carpir
Um amor, o amor mais puro
Que o mortal pode sentir!
Triste amor que só respira
Quando geme ao som da Lyra!

Quem será a desgraçada, e extraordinária mulher que assim canta, que assim ama?! Quem será o objeto de tão singular paixão? Ainda há uma que sacrifique o coração a um dever1 E que dever poderá subjugar a força de um amor tão poderoso qual em seus versos descanta! Nada sei, e a minha curiosidade pela primeira vez se desenvolveu. Protestei indagar quem era a infeliz que habitava aquela casa.

Seus olhos se inundaram de lagrimas que não vi correr, mas que vi enxugar.

A aurora assomava no horizonte pura, e risonha. Os inocentes passarinhos já saiam de seus ninhos trinando saudações ao dia quando a triste Dama se apercebeu que a noite em suas sombras deixava de a proteger: que forçoso era sufocar no peito a sua magoa, o seu amor que só ás trevas confiava; e que as trevas me revelaram!

Ergueu-se, fechou a janela, e eu tomando bem sentido na casa, me retirei dizendo: Quem será o objeto de suas afeições! Conhecê-lo-ei? Talvez!..

(*) Elen Biguelini é doutora em História (Universidade de Coimbra, 2017) e Mestre em Estudos Feministas (Universidade de Coimbra, 2012), tendo como foco a pesquisa na história das mulheres e da autoria feminina durante o século XIX. Ela escreve semanalmente aos domingos, no Site.

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