O último mês do verão – por Márcio Grings
Sempre quando abre a janela, o quarto é tomado pelo cheiro de mato. A cantoria dos pássaros, o céu azul abraçando o verde da vegetação, aquela sensação de estar se espreguiçando em harmonia com o início do dia. Adentrar uma manhã com a perspectiva de descompromisso, isso não tem preço. Até por que se tivesse de comprar essa sensação ou qualquer outra, estaria lascado. Consumismo zero é a bola da vez. Sempre se achou um herói por viver com tão pouco e fazer tanta coisa. Esse heroísmo está prestes a ganhar alguns novos superpoderes, nem ele mesmo ainda sabe… E, além disso, sempre rola um milagre vindo do nada.
Passa um café e prepara a tapioca. Gosta de usar apenas queijo e geleia de pimenta com abacaxi. Ao sentir o roçar do rabo da gata nas suas pernas, joga um pedaço do preparado direto da frigideira para a boca do bicho. Ela rapidamente o abocanha, e feito um chiclete que gruda acidentalmente no céu da boca, leva um tempo mastigando aquele naco de goma branca.
Depois de tomar seu café da manhã, caminha de pés descalços pelo pátio, satisfeito em perceber que a grama cresceu muito pouco nos últimos dias. Bem, até a próxima chuva. O cachorro cola nele como uma sombra. Olha para o pé de uvaia e percebe que, de um tempo pra cá, a árvore esticou um bocado. “As crianças estão crescendo”, fala em voz alta. Já o pequeno araçá foi tomado por alguma praga indesejada. Nota que algumas partes secaram ou estão carcomidas. De cócoras, dá um trato na plantinha e sorri ao vislumbrar novos brotos surgindo. “Ela vai se recuperar”, pensa esperançoso. Nesse meio tempo, aplica um okiyome no araçazeiro, e com a mão esquerda, delicadamente faz uma faxina nos ramos e caule, extirpando aquilo que já morreu ou perdeu o viço.
Uns três ou quatro pássaros pretos pousam no caqueiro. Os galhos, arqueados pelo peso dos frutos e das aves, visitantes cotidianas, são um autêntico banquete ao ar livre. Em sua afobação e desejo de devorar as guloseimas avermelhadas, os pássaros chacoalham as folhas como se fossem destaques em um carro alegórico. Com isso, um inesperado bólido maduro se esborracha vindo de um dos galhos mais altos. Sem problema, o cachorro abocanha o caqui no ato. Por alguns segundos, o pelo em volta da boca fica todo melecado. Isso até a língua fazer a limpeza, e assim, num passe de mágica a cara do animal fica asseada. Ao lado, o butiazeiro está cacheado por todos os lados. Lembra-se que precisa comprar uma aguardente da buena, e assim, fabricar seu licor safra 2015. Bebida boa para as noites frias.
Falando nisso, senta debaixo do liquidâmbar e percebe que algumas de suas folhas já começam a mudar de cor. Primeiro aviso de que estamos no último mês do verão. Em pouco tempo, todos esses matizes vão estar espalhados pelo gramado. A mutação dessa folhosa e esplêndida árvore é um dos principais espetáculos do outono. Pura ostentação de cores migrando de tons esverdeados para o amarelo, do laranja para vermelho, do púrpuro profundo, rumo ao desfolhamento completo. Até que o prenúncio da primavera opera o milagre dos brotos em uma nova reencarnação.
Outra vez flutuando antecipações nos pensamentos dele. Normal, é que as manhãs e noites já estão mais frias. Tudo se equaliza melhor com o ocaso do verão, como um milagre há muito tempo esperado. Findo o carnaval, a química interna muda, e o ano parece ganhar um segundo START. Finalmente a estação quente começa a dar adeus e tudo volta lentamente pro seu devido lugar. Olha pra cima e vê as nuvens se movimentando a encobrir o sol. A pele arrepia com um vento gelado anunciando a possibilidade de chuva.
Todo o dia surge um milagre vindo do nada.
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