A tecnologia social das produtoras colaborativas – por Leonardo Foletto
Quem trabalha com os princípios da cultura livre, especialmente a partir do software livre e das licenças Creative Commons, já passou pela situação: você apresenta seu projeto/pesquisa/produto pra alguém (ou um grupo de pessoas), é aplaudido, recebe os parabéns, vários “muito legal!”. Em determinado momento, depois ou mesmo durante os parabéns, surge alguém a questionar: “muito interessante o trabalho de vocês, mas como vocês se sustentam, se tudo é livre?” como ‘ganham dinheiro’, se o software é dado de graça?”.
A resposta varia de acordo com cada um, mas costuma fazer a pessoa questionada condensar, em poucas frases, muitas e muitas horas de conversas, pensamentos e estudos sobre os princípios da cultura e do software livre. Por exemplo: software (e cultura) livre não significa software (e cultura) grátis, como diz Richard Stallman na sempre citada frase “free as in free speech, not as in free beer“; nem toda troca precisa ter dinheiro envolvido – porque mesmo estando num sistema capitalista, em algum nível é possível sobreviver, sim, de trocas e moedas que não necessariamente o dinheiro; o sustento provém de atividades indiretamente relacionadas aos serviços prestados ou produtos oferecidos de maneira gratuita, como consultoria, capacitação, ensino, personalização; ou, ainda, não me sustento com isso, faço porque gosto e quero que seja assim.
Penso nisso porque o II Encontro das Produtoras Colaborativas, que juntou mais de 10 coletivos (entre eles a Casa de Cultura Digital Porto Alegre) em abril no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), em Belém do Pará, trouxe essa questionamento em diversos momentos. E, mais do que isso, trouxe alguns exemplos que podem fornecer respostas criativas às perguntas já citadas. Por que desde que a internet cortou alguns intermediários e ressignificou outros, a realidade é clara: não existe mais um modelo único, pronto pra aplicar sem esforço, que vai sustentar tua produção cultural – seja ela cinema, música, software, eventos, etc. Como Gilberto Gil já dizia em 2009, no BaixaCultura: “a digitalização não exige que toda obra de arte seja de graça, mas que um modelo próprio de comercialização seja criado para cada necessidade. A tendência atual é que pensemos não na propriedade, mas no comum, no compartilhado”
Pensar no comum e no compartilhado é justamente a linha-mestra das produtoras colaborativas, que, por hora, podemos resumir como uma tecnologia social que reúne um conjunto de metodologias baseados na cultura e no software livre, no cooperativismo e nas moedas sociais. São metodologias que começaram a ser estudadas em 2006, nos pontos de cultura do Quilombo do Sopapo e da Biblioteca do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, e aplicados pela primeira vez pelos pontões de cultura iTEIA, CDTL e Caravana Arcoirís na Aldeia da Paz, realizada no Acampamento Intercontinental da Juventude dentro do Fórum Social Mundial de 2009, em Belém.
De 2009 pra cá, a tecnologia tem sido testadas em diferentes lugares, principalmente em Pontos de Cultura – projeto criado dentro do Cultura Viva e uma das maiores conquistas da história da cultura brasileira, referência internacional (veja este relato, por exemplo) e que desde 2014 é, por lei, política pública brasileira.
A Produtora [email protected], que integra 6 pontos de cultura da região metropolitana de Recife mais um cineclube e um centro de recondicionamento de computadores, foi a primeira que aplicou de forma permanente, a partir de 2010, o conjunto das metodologias das produtoras colaborativas. Pedro Jatobá, um dos criadores da [email protected], apresentou a tecnologia, em uma das falas do primeiro dia de encontro, a partir da metáfora da árvore: assim como as árvores precisam de nutrientes para gerar frutos, as produtoras necessitam de insumos para alimentar o processo de formação continuada e, assim, fomentar os ciclos de amadurecimento de novos empreendimentos.
Assim, os troncos são as 6 áreas de atuação: memória, gestão, produção, economia, educação e comunicação. Os galhos são os núcleos temáticos: fotografia, áudio, vídeo, comunicação, produção cultural, criação de páginas na internet, entre outros. As folhas são os produtos e serviços (clipe, registro fotográfico, curso de fotografia, mapeamento, site, etc); os frutos são a formação continuada, aquilo que cai e dá fruto, replica; e, por fim, tudo está estruturado em seis raízes sólidas, que vale destacar aqui:
– cultura popular: atuar na divulgação e no fomento da cultura popular de cada local; ser a mídia livre da expressão cultural popular;
– software livre: além de toda a questão social do software livre, ele é, também, a única maneira legalizada de funcionar numa comunidade sem precisar pagar fortunas por licenças de software.
– cooperativismo: ser autogestionado, sem “patrão”, mas cooperativados; relação horizontal;
criatividade: buscar formas alternativas e criativas de não fazer “empacar” os projetos;
– empreendedorismo: a necessidade de fazer a produtora funcionar, e minimamente pagar as contas;
– moeda social: em muitas comunidades onde as produtoras atuam o dinheiro é escasso; então é criada uma moeda social pra balizar trocas dentro da comunidade. Ela pode fazer serviços pra fora da comunidade por dinheiro, mas dentro ela pode fazer serviços na moeda social, trocar a criação de uma página na internet por almoços, por exemplo. No caso da [email protected], há a moeda social Concha, a primeira criada em Pernambuco, toda gestionada dentro da plataforma Corais.org, que, ademais, é um ambiente de criação/gestão de projetos todo criado em software livre e que reúne várias outras produtoras colaborativas e outras redes.
É a partir dessa ideia que os produtos e serviços da [email protected] são estruturados. Eles incluem desde a digitalização de saberes e tecnologias locais até a produção de videoclipes de bandas locais, passando por oficinas de capacitação em vídeo e áudio com software livre e produção de eventos culturais. Um exemplo prático apresentado por Mãe Beth de Oxum (foto acima), do Centro Cultural Coco de Umbigada (ligada à colaborativa PE), foi o Contos de Ifa, um site que ensina a cultura afro-brasileira a partir de jogos onde os personagens são orixás (Ogum, Exú, Odé e Obadulaié). Do áudio ao design e a programação, tudo feito em software livre.
Numa das mesas do evento que participei (confira aqui um relato mais completo), Ricardo Abramovay, referência no Brasil quando o assunto é economia colaborativa, trouxe apontamentos sobre o cenário atual da cultura: nunca tivemos tantos instrumentos de cooperação social, mas, de fato, estamos sabendo cooperar ou estamos sendo soterrados pela avalanche de informações e ferramentas pasteurizadas que as redes sociais nos jogam diariamente? Uma das falas que mais teve ressonância no encontro, e que se liga à abertura desse texto é a de que o ativismo precisa se organizar a partir da viabilidade econômica. Ele ressaltou a necessidade de pensar em empreendedorismo (no que pese o uso torpe dessa palavra pelos setores mais liberais da administração) para viabilizar ações ativistas, pois esta é um elemento fundamental para dar visibilidade a causas de interesse planetário, especialmente neste momento, que está mais visível do que nunca que o consumo exagerado e a busca por energia para alimentar esse consumo estão destruindo DE FATO o planeta (se ainda tiver dúvida, leia “Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins“, de Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski, e tente não se preocupar).
É uma questão polêmica, que muitos ativistas torcem o nariz – anarquistas, então, nem se fala. Mas talvez uma das melhores respostas atuais pra questão que abriu esse texto seja, justamente, a tecnologia social das produtoras colaborativas: ativista, sim, no uso do software livre, na propagação do conhecimento aberto e das culturas populares através das mídias livres e no desenvolvimento de uma economia baseada em produção orgânica e sustentável. Mas também com um pé criativo na relação com o “mercado”, em formas de viabilizar financeiramente a produção da cultura livre, seja através de editais públicos ou de outras formas a serem inventadas, para que não se torne refém de nenhuma forma de financiamento. Buscando, sempre quando possível, relações menos baseada no lucro e mais na colaboração. Utopia? Em construção.
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