Pelo irrevogável direito ao delírio – por Atílio Alencar
Era uma vez uma cidade erguida sobre vales ventosos, que se derramava em concreto e asfalto contra a silhueta atlântica dos morros. Porto terrestre de viajantes e sonhadores, foi nesta cidade que muitos desembarcaram a fragilidade de suas bagagens e a fortaleza das suas intuições. O nome da santa nas bocas mundanas foi esculpindo o barro, e dele fez-se a maria com letras minúsculas: maria do povo, da rua, das filas nos terminais de ônibus.
A maria do carvão nas paredes e das mãos suadas da labuta, ou sujas do papel amassado dos dinheiros.
A cidade cresceu torta, projetando as ruínas futuras em edificações precipitadas, esmagando o passo dos pedestres com suas placas de comércio. Freando seus farois impacientes a poucos metros do atropelamento, aboliu qualquer vestígio de lirismo para assumir uma face rude de gerente de supermercado. Por uma questão de pragmatismo, traiu os seus: declarou-se leal aos departamentos de finanças, e maldisse a amizade em público.
Arrastou suas praças para a escuridão, atiçou seus cães contra a multidão de joões e marias que dançava, fez incendiar o coração das centenas. Soprou-lhes a fumaça do charuto na cara, exigiu obediência, negociou a letra morta da regra de acordo com a trama mesquinha dos seus bastidores.
Proibiu a voz ativa e a rebelião, exaltou o mérito dos bajuladores, quis calar o desaforo em toda garganta que porventura o ensaiasse. Fabricou o silêncio abafando o canto; o lucro assombrando os parques, as vilas, as várzeas do futebol. Distribuiu esmolas com desfaçatez, foi o caudilho que sacrificou seus homens por míseros quinhões de terra ociosa. O pagamento a perder de vista lhe atraiu a cobiça. Encomendou relatórios para melhor prever as nuances da maré, e por medo das ondas escolheu o deserto.
Quando as crianças saíram num vagar sonâmbulo pelas ruas, a cidade se abriu em abismo, e vociferou mortíferas sentenças prematuras. Quem andar na rua a exibir um sorriso, é culpado. Quem souber escrever, é réu confesso; e quem não souber, está escondendo alguma coisa. Quem marchar fora da linha reta, não presta para os ofícios úteis.
Quem disser João ama Maria numa parede e tomar um beijo ao silêncio do concreto – eis a delinquência a ser punida com a chibata -, favor fazer as malas e sumir no exílio dos vagões.
Na falta dos culpados à cerimônia do julgamento, a cidade fez das vítimas os criminosos ideais, sobre cujas costas se pode cuspir sem remorsos. Depois de haver matado por ninharia, pegou gosto: persegue, devassa, estrangula os corpos nem bem-formados do seu catálogo de suspeitos.
A cidade segue trôpega pelo asfalto esburacado. Mirando a cada semáforo o osso mais vulnerável, aquele que uma vez partido aleija a alma. A cidade – não a cidade dos que enchem o peito de amor e indignação, não é dessa cidade que falo – tem um vulcão crescendo sob a manta de piche que lhe cobre os pés.
Quando explodir em febre, veremos quem adoecia de fato: os mandatários e suas leis, ou nosso direito à alegria.
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