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A Medicalização da Vida – por Liliana de Oliveira

Guimarães Rosa já nos dizia que o que a vida quer da gente é coragem. Viver é perigoso. Viver exige um tanto de paciência, outra tanto de resiliência; um tanto de coragem, outro tanto de vontade e, assim, vamos vivendo. Pena que no correr da vida nos esqueçamos que a vida é assim.

Quando perdemos alguém, por morte ou por desamor, é necessário que nos enlutemos. Se faz necessário se retirar, se entregar a si mesmo, sentir o sofrimento nos morder e quase arrancar pedaço. Aos pedaços vamos seguindo até elaborar nossa dor e resignificar o sofrimento.

O tempo coloca as coisas no lugar e nossa dor pouco a pouco vai nos permitindo ser como nos diz Guimarães capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza. (…) Dói sempre na gente, alguma vez, todo amor achável, que algum dia se desprezou… ou que morreu ou que desamou e, não há como não doer. E para doer é preciso que não estejamos anestesiados, é preciso que estejamos conscientes do que o outro nos provoca.

Conscientes, inteiros e aos pedaços vamos sentindo e vivendo porque sentir é viver. Por mais doloroso que seja sentir a ausência daqueles que amamos, ainda assim é viver. Entretanto, sempre aparecerá alguém com boa intenção que nos sugere não sofrer, que nos sugere medicar e anestesiar nossa dor até não sentir mais.

A medicalização da vida parece ser a saída encontrada por nós para não nos depararmos com o sofrimento, como se fosse possível viver sem sofrer. As crianças são diagnosticadas e medicadas precocemente; se são muito ativas são hiperativas, se são lentas devem ter problemas de estima ou aprendizagem, se têm um humor mais instável são bipolares e, assim, seguimos diagnosticando e medicando nossas crianças. Os adolescentes vivendo a complexidade de sua adolescência não escapam da drogadição seja ela por meio de drogas lícitas ou ilícitas, muita por meio da medicação. Os adultos parecem cada vez mais se medicar, remédios para dormir, remédios para acordar, remédios para trepar, remédios e mais remédios.

A Associação Americana de Psiquiatria publicou em 2013 uma nova versão do DSM, o ‘Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais’, livro conhecido como a “bíblia da psiquiatria”. Com ele, foram criadas novas doenças e novos transtornos mentais. Será mesmo que estamos cada vez mais doentes? Será que não há uma indústria interessada no aumento de diagnósticos e por consequência no aumento da venda de medicamentos? Ou será que nos falta coragem para viver?

O mais importante e bonito do mundo é isto:  que as pessoas não estão sempre iguais,

ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. E porque vamos sempre mudando, se faz necessário compreender as singularidades, as anormalidades, as incoerências não como doença a ser medicada, mas como a capacidade que temos de ser e nos experimentar de outros modos.

Como diz Guimarães, qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. Espero que possamos encontrar um descanso na loucura por meio do amor e não dos medicamentos.

 

“O correr da vida embrulha tudo,

a vida é assim: esquenta e esfria,

aperta e daí afrouxa,

sossega e depois desinquieta.

O que ela quer da gente é coragem.

O que Deus quer é ver a gente

aprendendo a ser capaz

de ficar alegre a mais,

no meio da alegria,

e inda mais alegre

ainda no meio da tristeza!

A vida inventa!

A gente principia as coisas,

no não saber por que,

e desde aí perde o poder de continuação

porque a vida é mutirão de todos,

por todos remexida e temperada.

O mais importante e bonito, do mundo, é isto:

que as pessoas não estão sempre iguais,

ainda não foram terminadas,

mas que elas vão sempre mudando.

Afinam ou desafinam. Verdade maior.

Viver é muito perigoso; e não é não.

Nem sei explicar estas coisas.

Um sentir é o do sentente, mas outro é do sentidor.”

 

A gente quer passar um rio a nado, e passa:

mas vai dar na outra banda é um ponto muito mais em baixo,

bem diverso do em que primeiro se pensou.

Viver nem não é muito perigoso?

Dói sempre na gente, alguma vez,

todo amor achável,

que algum dia se desprezou…

Qualquer amor já é um pouquinho de saúde,

um descanso na loucura.”

 

Fragmentos do livro “Grande sertão Veredas”

Guimarães Rosa

 

 

 

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