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A dor guardada – por Bianca Zasso

biancaHá cineastas que sabem falar de amor. Outros que sabem como ninguém usar o silêncio. E ainda tem a turma que imprime na película os mais secretos sentimentos, aqueles que nos assombram todos os dias mas que não temos coragem de expor, seja por vergonha ou orgulho.

Ingmar Bergman circulava por todos esses grupos sem perder a mão em nenhum momento. Seus filmes não são fáceis e isto nada tem a ver com a linguagem ou a construção do roteiro. A dificuldade está no tema. É tudo tão próximo, tão real que nós, seres em eterna fuga dos problemas da alma, nem sempre conseguimos encarar sem sucumbir à queda. Bergman nos derruba. Por um bom motivo, já diriam os psicanalistas e os cinéfilos.

Sonata de outono, lançado em 1978, pode não ter as cenas oníricas e belas presentes em Persona e O sétimo selo, porém suas imagens tocam os mais diversos espectadores por falar de um elemento que todos nós, mesmo de modo errante, temos que conviver: a família. Os círculos familiares bergmanianos não são aqueles dos almoços de domingo infestados de sorrisos e conversas animadas.  O que se esconde entre um prato e outro é que interessa. Os ciúmes, as mágoas, as faltas.

O diretor, para contar a história do encontro entre uma mãe e uma filha que não se viam há sete anos, convoca duas atrizes que poderiam ser chamadas de deusas sem exageros. Ingrid Bergman empresta seu rosto único para Charlotte, a concertista mais interessada no reconhecimento de sua arte no que no crescimento das filhas, enquanto Liv Ullmann disfarça sua beleza com um figurino feito de saias longas, blusas largas e cabelos presos em tranças. São tecidos que falam. Sua personagem, Eva, leva seus dias sempre apreensiva, com medo do erro. Sua roupa é um reflexo de seus traumas.

A contemplação em Sonata de outono fica em segundo plano. O interesse de Bergman está em transformar em filme uma situação já vivida por muitos. Acertar as contas com o passado é uma tarefa complexa. O longo diálogo protagonizado por Ingrid e Liv não dá espaço para respiros, mesmo com os flashbacks com atmosfera de sonho. O que precisa ser dito é pesado, está guardado há tempos, o que torna seu gosto ainda mais amargo.

Há ódio entre mãe e filha. Não um ódio comum, mas o transtorno de querer vingança pelos atos de quem nos colocou no mundo. Parece inadmissível para alguns admitir que nossos genitores são humanos e podem errar feio, com consciência ou por pura distração. Não há perfeição na realidade. Por mais que Caetano diga que gente é para brilhar, há sempre algo de opaco. Faz parte. Temos que encarar.

Os argumentos utilizados por aqueles que não gostam dos trabalhos de Ingmar Bergman é que cinema é para fugir, é entretenimento. De dura já basta a vida. Minha réplica é que a sala escura pode ser um ponto de partida, o lugar onde brota a coragem para abrir nossos baús e colocar em pratos limpos aquilo que nos causa aperto no peito, aquele mal-estar que médico nenhum sabe a causa. Está do seu lado, caro espectador. Aparece na tela mas já estava com você antes, escondido até de você mesmo. Todos já passaram ou vão passar por uma sonata de outono em suas vidas. Bergman pode ajudar para que ela chegue antes que seja tarde demais.

Sonata de outono (Höstsonaten)

Ano: 1978

Direção: Ingmar Bergman

Disponível em DVD

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Um Comentário

  1. Na sala Vogue em POA assisti essa obra do Bergman, lá na década de 70, inesquecível. Denso o filme e o comentário da Bianca.

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