Santa MariaTragédia

KISS, MIL DIAS. Tragédia como essa não é fruto da fatalidade, mas “resultado da omissão e da ganância”

kiss seloMauro Donato é jornalista, escritor e fotógrafo nascido em São Paulo. Nesta semana, ele escreveu artigo a respeito da tragédia da boate Kiss, que matou 242 meninos e meninas há exatamente mil dias. E que terá, inclusive, um seminário específico em Brasília, na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, colegiado presidido pelo santa-mariense Paulo Pimenta.

Ninguém precisa concordar, mas é interessante conferir um material que o editor costuma chamar de “olhar de fora”, isto é, ausente do dia-a-dia santa-mariense e que, definitivamente, não é mais o mesmo. Há mil dias. O texto foi publicado originalmente no portal Justificando.Com. Confira:

Tragédias como a da boate Kiss não são fatalidades, são resultados da omissão e da ganância

O Promotor de Justiça João Marcos Adele y Castro hoje está aposentado, mas de 2009 até julho de 2011 encaminhou denúncias contra a boate Kiss que poderiam ter evitado a tragédia que culminou em 242 mortes. Durante aqueles três anos, o Ministério Público instaurou três procedimentos que poderiam resultar no fechamento da Kiss, em Santa Maria. Nenhum, porém, foi concluído.

Os atuais promotores, que sentiram-se ofendidos com o cartaz “O Ministério Público e seus Promotores também sabiam que a boate estava funcionando de forma irregular” a ponto de processar os pais de vítimas por calúnia estão, portanto, faltando com a verdade. Sabiam sim. Podem até alegar que não tinham poder para fechar a casa, mas sabiam e nada fizeram.

O promotor Adele y Castro foi o único sincero na história toda. Logo após o incêndio ocorrido em janeiro de 2013, ele deu a seguinte declaração:

“Segui a lei, mas não deixo de ter uma parcela de culpa, porque meu trabalho não foi eficiente o bastante. O MP tem alguma responsabilidade. A tragédia aconteceu porque quem deveria fiscalizar não fiscalizou.”

O MP não tem poder de fechamento mas pode, e deve, encaminhar denúncias às autoridades competentes. A um juiz, por exemplo, para que conceda uma liminar suspendendo as atividades do local, já que havia indícios de risco aos frequentadores e trabalhadores do local (17 funcionários da boate morreram).

Mas a boate permaneceu aberta mesmo com um ofício de 2011 que apontava 29 irregularidades. Vinte e nove! Muitas delas graves como a obstrução da rota de fuga, porta estreita e ainda falta de saídas de emergência (alias, só havia uma porta). Fatores estes que, após feita a perícia, comprovaram-se determinantes para o alto número de mortes.

Esse ofício foi enviado pelo MP diretamente ao prefeito e ao Comandante do Corpo de Bombeiros. Resumo da ópera: MP, Bombeiros e Prefeitura (como afirmam os demais cartazes espalhados por Santa Maria), tinham conhecimento dos riscos. Os três órgãos sabiam.

E aqui começa a grande diferença entre formas de atuar. Normalmente familiares e amigos de vítimas costumam constituir associações, formam grupos aguerridos e fazem marcação cerrada no trâmite do processo. Foi o que fizeram os pais dos jovens mortos na Kiss. Já os poderes públicos costumam sentar em cima, isso quando não ocultam mesmo.

Quando da instauração do inquérito da Polícia Civil, a prefeitura de Santa Maria não entregou todos os documentos. O tal ofício com as 29 irregularidades não constava dos autos e foi só graças a uma denúncia anônima que foi “descoberto”.

É daí que vem a rusga atual. A presença ativa na cobrança por justiça está incomodando os acomodados. E desde maio deste ano, quando foi marcada uma audiência na Comissão de Direitos Humanos para cobrança de explicações sobre o arquivamento dos processos contra servidores públicos indiciados pela Policia Civil, a tensão só faz crescer.

Na ocasião, representantes do MP procuraram a Associação das Vítimas em Santa Maria para “iniciar um diálogo”. O diálogo, claro, era um monólogo cheio de veladas intenções de intimidação na linha “nós precisamos nos unir, isso não vai chegar a lugar nenhum.” Imediatamente vieram também os pedidos para a retirada dos cartazes e o fim das manifestações em frente ao prédio do Ministério Público de Santa Maria. Aconselharam aos pais que mantivessem um tom equilibrado.

“Querer equilíbrio depois de tantas faltas de respostas, com a impunidade atingindo tão fortemente os familiares que buscam justiça, é algo próprio de seres humanos sem consciência e incapazes de entender o que significa perder um filho em uma tragédia que poderia ser evitada por quem pagamos para protegê-los”, resume equilibradamente Paulo Carvalho, pai de uma vítima, diretor da AVTSM (Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria) e um dos processados pelo promotor Ricardo Lozza.

Ainda assim foi fixado um pacto: o atendimento às solicitações dos Promotores mas, em contrapartida, uma audiência na Assembleia Legislativa do RS onde foram entregues documentos acompanhados do pedido de análise das reinvindicações dos pais e familiares. Afinal de contas, a Policia Civil havia indiciado o prefeito por descaso e omissão e nas páginas do inquérito policial ficava evidente sua tentativa de fugir à responsabilidade ao dizer que “ignorava”, que “tinha ouvido falar” sobre o ofício (alegação recorrente também nos depoimentos dos Secretários indiciados).

Como nada andou, a paciência mostrou limites. Pais e familiares realizaram não só a audiência na Comissão de Direitos Humanos em maio como em agosto foram até Brasília divulgar as informações do processo e solicitar a parlamentares que exigissem explicações dos representantes do MP e Polícia Civil.

E assim, logo em seguida, no mesmo mês, os promotores começaram a processar os pais pelos cartazes e textos.

Em forte contraste com o mea culpa do promotor João Marcos Adele y Castro, os pronunciamentos atuais dos promotores “ofendidos” são uma afronta ao equilíbrio emocional de qualquer cidadão.

“Não tenho do que me arrepender. É claro que, se eu sonhasse que isso iria acontecer, eu teria ido lá e fechado”, disse Ricardo Lozza quando perguntado se não se arrependia de não ter pedido à Justiça o fechamento a boate.

Um outro promotor, Maurício Trevisan, declarou: “Ninguém era vidente para antever que, em 2013, aconteceria isso.”

Ou seja, um acredita que Freud explica e outro se arrepende de não ter jogado búzios. Ninguém pensou em conferir denúncias que estavam ali na mesa desde 2009? A aplicação de vistoria em medidas de prevenção e o cumprimento de normas de segurança tornam desnecessário que as pessoas sejam “videntes” senhores promotores, já pensaram nisso? Não é para isso que existem fiscais e especialistas técnicos?

Aqui cabe um parêntese: é curiosa a atuação do MP. Para algumas questões é extremamente ativo, alerta, operante e palpiteiro como na briga que tem travado contra o fechamento para carros na avenida Paulista. Já para uma tragédia anunciada…

Mas a luta não se faz necessária apenas por justiça às mortes. Há 600 sobreviventes, muitos com graves sequelas, que igualmente necessitam reparações. Por isso a AVTSM e o Movimento do Luto à Luta agendaram o Seminário dos MIL Dias (“mil dias de agonia, indignação, desrespeito”) que ocorrerá novamente em Brasília no dia 04 de novembro. Ali serão apresentadas as questões urgentes para sobreviventes e familiares. Também serão discutidas políticas públicas de segurança.

“Será um evento forte, com depoimentos dos pais e sobreviventes, testemunhas de um horror em que a negligência e a omissão concorreram e muito para o enorme número de vítimas”, completa Paulo Carvalho.

Tragédias como a da Kiss não são fatalidades. São resultado cartesiano de prevenção inexistente, omissão do poder público e ganância. Não necessariamente nessa ordem.

Quem desejar ajudar com a realização da caravana pode acessar esse link.” 

PARA LER A ÍNTEGRA, NO ORIGINAL, CLIQUE AQUI.

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

3 Comentários

  1. Pelo andar da carruagem, que vagueia em meio a nuvem de fumaça que se criou e encobre as mentes jurídicas, o clamor por justiça vai acabar não dando em nada. Eles tem se mostrado mais fortes e fazem pouco caso da opinião publica.Será que não tem uma pessoa do meio jurídico ou autoridade que consiga levar à justiça uma denuncia com todos estes casos de omissão? Vão esperar prescrever, para depois lamentar mais ainda? E só para constar, todo mundo fala 242 vidas, na verdade foram muito mais que isto. Por que não botaram nesta conta todos aqueles sobreviventes que faleceram meses depois por causas diretas ou indiretas da intoxicação causada pela fumaça da (Kiss)omissão?

  2. Não foi uma tragédia, foi um MASSACRE!! Tragédias são evitáveis e não são antecipadas com ofícios do MP para o prefeito, perguntando se a KISS estava regular? A resposta do alcaide foi que: A KISS é irregular (fls. 334 e seguintes do processo criminal). O ente público que concede a licença de operação (prefeitura), e o que fiscalizava KISS via TAC – Termo de Ajustamento de Conduta, AMBOS tinham ciência das irregularidades e ilegalidades da Boate da Morte, e NADA FIZERAM para fecha-la!!! Ela, a KISS, foi o Vernichtungslager (Campo de extermínio, em alemão) Auschwitz sulino, que só foi fechada, lacrada, a FOGO e CIANETO, pois quem deveria resguardar pela sua legalidade operacional FALHOU ou se OMITIU!!! Assim, simples e didático!!!

  3. ""Tragédias como a da Kiss não são fatalidades. São resultado cartesiano de prevenção inexistente, omissão do poder público e ganância. Não necessariamente nessa ordem""
    Lamentavelmente, perfeito à colocação cartesiana.
    242 assassinatos.
    O resultado e os posteriores encaminhamentos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo