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Ivone, uma mulher – por Atílio Alencar

Ivone arrastava o chinelo de solas gastas pelo cascalho da ladeira, em ritmo dado com a melancolia. Vinha sempre com um sorriso tão gasto quanto a borracha das sandálias: prestes a rebentar em machucados. A gente, na época, não sabia o que; preferia a antipatia, a implicância.

Éramos eu e uns dois primos, ainda guris mal-chegados aos dez anos. Lembro que ela ficava mais faceira quando passava por nós, contagiada de brinquedos; troçava, convidava a piazada pra tomar café na casa velha. Por vezes fomos lá, de dia: um pátio escuro já antes do sol morrer, cercado de um taquaral fechado, com um poço de águas fundas no limiar com o que desconhecíamos. A casa era simples como todas as nossas, porém mais triste, mais quieta. Eram, a casa e a dona da casa, assim muito afinadas, íntimas de um mesmo sentimento que apodrecia as janelas. O único vestido que Ivone vestia tinha uma cor aparentada à da casa, um rosa roto, e também estragos brutos, feios.

Quando Ivone se botava a lavar a roupa pesada na areazinha de chão batido sob um teto de lona, a casa toda virava um lago grande, espesso, turvo de inadequado. Não digo que chovesse sempre que a Ivone machucava as mãos no sabão de pedra; mas era como se chovesse. O pátio, que de costume já tinha sempre poças de água parada escondidas nos cantos, daí que virava mesmo um charco. Hoje eu penso, sem grandes pretensões de adivinhar os mistérios alheios, que aquele lugar inteiro chorava com a Ivone, com os lamentos que ela soltava na sina de cansar pelos outros.

Se bem que nem tudo são mistérios nessa vida.

Acontece que a Ivone tinha também um marido. E três filhas moças: a mais nova que se deixava ficar de passagem com a gente, vez em quando; as mais velhas que mal mexiam a boca pra cumprimentar a vizinhança. O marido era a desgraça explícita da família. Trabalhava numa oficina ali mesmo no beco cheio de cortiços em que a gente viveu a farra e a miséria da infância. Nunca, que eu me recorde, ouvimos a voz dele durante o dia; mas depois da diária cumprida, com as ideias endiabradas pela cachaça no bar do Polaco, o homem vinha todo bambo, o bafo de gambá sensível aos longes, xingando de nomes feios a gurizada que lhe acertava boladas nas canelas.

A gritaria que ele fazia em casa era o pior. Ouvíamos as ofensas, as desconfianças, os impropérios destinados à mulher e às meninas. Choros de raiva e cansaço. Desistências. O homem perseguindo as filhas, errando até os nomes da prole, querendo vingança por ser um imbecil. Davam voltas e voltas na casa, a gente via da janela – até que ele caía, podre, imprestável, a cara desfazendo nas poças. Elas vinham vindo devagarinho, por detrás das taquareiras. Juntavam o traste do chão. Depois, madrugada alta, seguíamos ouvindo o choro dele, emoldurado dos curtos gemidos femininos.

Um dia, que parecia ia ser igual aos outros, o marido da Ivone morreu. Ninguém fez nada: ele não foi envenenado; nossas famílias, sempre corretas no cuidar a vida dos outros, nunca violaram o direito do falecido infernizar a vida de quem com ele vivia. Também não houve lamentos; os adultos foram ganhar o pão, as crianças foram jogar a bola. A vida mudava e não mudava.

Mas pra Ivone, mudava, e muito. E tudo.

Foi trabalhar fora, encaminhou as filhas nos estudos, quis a vida acumulada. Comprou mais de um vestido, pintou a boca com o vermelho mais exuberante que a vendedora da Avon trazia no catálogo. Arranjou amantes, piscava o olho para os guris que engrossavam a voz, mandou botar um espelho grande na sala –  pra nunca, nunca mais sair de casa sem se reconhecer as vaidades. Aprendeu a ler cartas. Baixou a Pomba-Gira. Incrementou de misticismos atrevidos o pátio da casa, provocadora dos costumes católicos. Dançou e tomou cachaça ao redor do fogo.

Nunca mais se proibiu de nada, a Ivone.

As famílias não viam com bons olhos isso tudo. Gente pobre, mas direita; pelo certo. Mulher viúva, três filhas pra criar. Quisesse casar, casasse. Arranjasse outro homem – o mesmo raio não cai duas ocasiões. Recuperasse a boa crença, os modos, a humildade de lavar toda noite o mesmo vestido da manhã seguinte. Queria comunidade? Queria futuro? Queria o respeito das velhas? Tudo ao alcance; com preços.

Ivone não ouviu ninguém. Ninguém também ouviu mais homem nenhum levantando a voz para ela. A cachaça, que ela servia em casos de merecimento, era para delírios próprios. Quando foram entregar a santinha na porta da casa (a Ivone mandou pintar toda a madeira velha, agora era festiva; que durasse mais um ano, mas durasse bonita), ela recusou. Não fazia questão de receber santidades que nunca a protegeram dos trágicos.

Na minha lembrança, Ivone nunca morreu, apesar dos anos. Periga, se volto lá, ouvir sua gaitada exagerada, a festa no dia de semana, os afetos que distribui aos moços e velhos, faceira.

Periga eu ouvir seus gritos de liberdade.

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