Mortos não contam histórias – por Maiquel Rosauro
O silêncio rompido pelo balanço dos galhos sempre alertava que não estávamos sozinhos. O vento e as árvores eram eternas testemunhas de nossas travessuras. E quando garotos de 11 anos não querem ser vistos, é sinal de que alguma coisa eles andam aprontando.
Na 6ª série, eu tinha um colega que quase todos os dias passava lá em casa antes da aula. Volta e meia modificávamos nossa rota em busca de aventura. Até que um dia resolvemos atravessar o Cemitério Ecumênico Municipal.
Eu morava ao lado do Cemitério, na Rua das Açucenas, e minha maior preocupação era não ser visto por meus vizinhos. Se alguém me dedurasse para a minha vó, eu estaria muito encrencado…
Entrávamos escalando o muro dos fundos, que era mais baixo, e cruzando por cima dos túmulos. Os caminhos estreitos sempre aguardavam algumas surpresas, como cães raivosos, pessoas mal-encaradas, sepultamentos, devotos de Mariazinha Penna, lápides com nomes curiosos e alguns belos jazigos. Mas na maior parte do tempo não encontrávamos ninguém em nossa travessia pelos onze hectares do Cemitério.
Sempre chegávamos à escola com alguma história para contar, o que tornava a aventura ainda mais fascinante.
Duas décadas depois, o cenário já não é mais o mesmo. Domingo passado nos despedimos da tia Odette. Uma querida octogenária que há anos lutava contra o Alzheimer. Ao chegar ao local, nossa tristeza transformou-se em indignação.
O vento e as árvores ainda estão lá, cortando o silêncio e relembrando minhas aventuras do passado. Mas a beleza do campo-santo se perdeu no tempo. O sepulcrário está tomado pelo mato e pelo lixo. A vegetação se alastrou pelas ruelas e centenas de velas foram deixadas para apodrecer entre folhas secas e galhos caídos, criando um odor desagradável, mórbido e humilhante para aqueles que já nos deixaram.
Para realizar o sepultamento, meu avô, irmão da tia Odette, precisou ir capinar em volta do jazigo no dia anterior. No domingo, após a inumação, conversamos com alguns funcionários do Cemitério, antigos conhecidos da nossa família, e eles comentavam sobre o descaso da Administração Pública. Em alguns locais onde há água paradas os funcionários têm receio de limpar devido a infestação de mosquitos.
Mortos não contam histórias, mas se pudessem falar não creio que se importariam com as pândegas de crianças. Acho que até sentiriam falta de nossas visitas esporádicas. Acredito que reclamariam do abandono do Cemitério. Lá deixamos os nossos mortos e também todo o respeito que um dia tivemos por nossos entes queridos.
OBSERVAÇÃO DO EDITOR: a foto que ilustra esta crônica é de Deivid Dutra, do jornal A Razão.
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