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Contatos imediatos – por Bianca Zasso

bianca aQual o gosto de um soco? Dizem que logo após desferido o golpe, a vítima sente algo amargo, quente e viscoso na boca, mistura de metal com sangue, que ao ser absorvido pela língua se transforma em muitas coisas. Raiva é apenas uma delas. O cineasta francês Jacques Audiard trouxe para o título e para a trama de um de seus melhores filmes um pouco desse sabor.

Ferrugem e osso, lançado em 2012, tem como protagonistas Stéphanie e Ali, dois jovens que unem suas realidades de uma maneira pouco convencional. Ela arruma briga em uma boate na qual ele é segurança. Um socorro, uma carona e um número de telefone. Stéphanie trabalha em um parque aquático como treinadora de baleias e durante uma das apresentações acaba perdendo parte das pernas.

Um desespero, uma ameaça de desistência e um telefonema. Eis o encontro. Ela com sua maneira complicada de encarar os romances, ele com seu jeito bruto de lidar com as pessoas, consigo mesmo e com seus sonhos. Os elementos que nos diferenciam uns dos outros são colocados em evidência em Ferrugem e osso sem julgamentos.

Ali, interpretado sem maneirismos pelo belga Matthias Schoenaerts, precisa sustentar o filho de cinco anos e entre um subemprego e outro, cai no universo das lutas ilegais e suas apostas. Boxeador na juventude, ele se vale dos socos não só para pagar suas contas, mas para tentar acertar seu rumo. Tudo em Ferrugem e osso é cru e inesperado como uma luta sem regras. Há belas paisagens e o mar nunca foi tão azul como na cena do primeiro mergulho de Stéphanie após seu acidente.

bianca bA natureza é sábia, como mostram as orcas treinadas que encantam o público, mas as pessoas nem tanto. Em Ferrugem e osso isso não é defeito, é guia. Por mais que o tema central do filme seja a relação entre um homem e uma mulher, a preocupação maior é mostrar isto sem a névoa do encantamento. Quando Ali propõe sexo para Stéphanie isso acontece sem indiretas. São duas pessoas suprindo seus desejos, sem preocupações, sem dúvidas.

A técnica de efeito especial utilizada para as cenas em que Stéphanie aparece sem parte das pernas chega a ser assustadora, tamanho o seu realismo, tornando a personagem ainda mais vulnerável aos olhos do público. Só que ao invés de pena, a condução das cenas faz com que sejamos tomados por empatia, já que a luta diária da moça representa um pouco a luta de cada um. Podemos ter as duas pernas, mas isso não é garantia de equilíbrio.

A fotografia, assinada por Stéphane Fontaine, intensifica o que a câmera de Audiard mais quer mostrar: o contato. A pele que sangra, transpira, com suas pequenas marcas ou grandes cicatrizes. O corpo que executa coreografias precisas ou avança em direção a outro corpo com mais força que técnica, em busca de dinheiro, liberdade ou prazer. Ferrugem e osso é humano, tem carne, fluídos e pode emitir aquele gosto estranho que os especialistas afirmam ter o soco. Marion Cottilard, que já havia deixado claro sua capacidade de metamorfose em Piaf, um hino ao amor, de Olivier Dahan, neste trabalho consegue o que poucas de suas colegas de geração atingem: uma personagem real que mostra sua dor sem precisar cair em prantos infinitos. Seus olhos dizem tudo. O amargo do soco está no seu olhar.

Manter contato nunca foi tão fácil. As pessoas desejam o toque e ele pode estar a um clique de distância. Porém, experimentar a textura de si próprio, lidar com nosso próprio corpo mudando de forma, seja de maneira abrupta ou com o passar dos anos, ainda é uma ferida difícil de cutucar. Tirar a casquinha sempre causa agonia. Uma sessão de Ferrugem e osso pode causar estragos e ele vem de todos os lados, sem clímax definido, sem paz eterna ao se aproximar do fim. Os ossos da mão, por mais que retornem aos seus lugares, sempre vão doer quando descermos o braço em alguém. Ainda mais se esse alguém for a gente mesmo.

Ferrugem e Osso (De rouille et d’os)

Direção: Jacques Audiard

Ano: 2012

Disponível em DVD, Blu-Ray e na plataforma Netflix

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