Artigos

O Auto da Compadecida 2: Justiça ou Misericórdia? – por Amarildo Luiz Trevisan

Enfim, “o filme nos convida a uma escolha fundamental: de que lado estamos?”

Outro dia, compartilhei uma crônica sobre O Auto da Compadecida 2 em um grupo de WhatsApp composto por colegas de trabalho e alunos de diversas universidades do Brasil. Fiz isso de maneira despretensiosa, como tantos outros integrantes da lista fazem eventualmente, e fiquei surpreso com os comentários provocativos que surgiram. Um deles dizia, mais ou menos, o seguinte:

“O primeiro foi ótimo. Esse segundo me decepcionou. Uma repetição sem muita inovação.”

Intrigado, resolvi buscar algumas resenhas do filme na internet e encontrei esse mesmo argumento sendo repetido: o novo longa teria menos frescor e inovação do que o primeiro. Apesar dos elogios unânimes à estética da produção, à atuação impecável de Selton Mello e Matheus Nachtergaele reprisando Chicó e João Grilo, além da presença marcante de Taís Araújo e Eduardo Sterblitch, havia um consenso crítico de que o enredo não se sustentava tão bem quanto o original.

Embora eu não concordasse com essa avaliação, confesso que a provocação me levou a questionar o motivo de eu ter gostado tanto deste segundo filme – quase do mesmo modo que havia apreciado o primeiro.

Foi então que consultei aquela voz interior de que falava Santo Agostinho, aquela que todos possuímos e que, quando escutada com atenção, pode revelar verdades inesperadas. E a minha verdade era simples: gostei do filme pelo seu desfecho.

João Grilo e o Julgamento do Brasil

Assim como no primeiro filme, João Grilo morre novamente, alvejado por um cangaceiro, e retorna ao além. E, mais uma vez, se vê diante de um julgamento onde se decide seu destino final: céu ou inferno. De um lado, o diabo apresenta razões convincentes para sua condenação; do outro, Jesus busca absolvê-lo. Mas a cena ganha um novo contorno com a chegada da Compadecida, interpretada com força e presença por Taís Araújo.

O que me fascinou nesse momento foi a solução narrativa encontrada para a sentença de João Grilo. Em vez de seguir a lógica da punição ou da absolvição incondicional, a Compadecida propõe algo diferente: uma nova chance. Em um gesto que rompe com o embate maniqueísta entre condenação e redenção total, ela defende a possibilidade de aprendizado e transformação.

Fiquei pensando se essa não é justamente a encruzilhada em que o Brasil se encontra hoje. De um lado, o discurso punitivista ecoa em frases como “bandido bom é bandido morto”, defendendo a aplicação rigorosa das penas sem margem para reabilitação. De outro, políticas sociais tentam oferecer oportunidades para aqueles que, historicamente, foram excluídos.

O Povo Como Réu?

A lógica da Compadecida me fez refletir sobre os dilemas contemporâneos do Brasil. Nos últimos anos, houve um avanço significativo no combate à fome e à miséria – em 2014, por exemplo, o país saiu do Mapa da Fome da ONU. Mas, entre 2019 e 2022, a pobreza e a insegurança alimentar voltaram a crescer, trazendo de volta milhões de brasileiros à condição de extrema vulnerabilidade.

Diante desse cenário, surge a grande pergunta: a culpa é de quem? O país falhou em garantir a sustentabilidade dos avanços sociais ou o povo simplesmente “não soube aproveitar” o que lhe foi oferecido?

O julgamento de João Grilo reflete essa controvérsia. Condená-lo sumariamente seria admitir que sua trajetória já estava selada desde o início – assim como atribuir unicamente à população a responsabilidade por sua própria miséria. Dar-lhe uma segunda chance, por outro lado, é um ato de reconhecimento de que o contexto importa, de que trajetórias podem ser ressignificadas e de que o Estado tem um papel fundamental na construção dessas possibilidades.

O Lado em Que Estamos

O grande mérito de O Auto da Compadecida 2 está justamente em apresentar essa questão sob uma roupagem filosófica e teológica irresistível. No final das contas, o filme nos convida a uma escolha fundamental: de que lado estamos? Do lado do diabo, que exige a condenação implacável? Ou do lado da Compadecida, que insiste na misericórdia e na possibilidade de redenção?

Talvez seja esse o verdadeiro dilema do Brasil contemporâneo. E, como João Grilo, seguimos à espera de um julgamento que defina o que ainda pode ser feito por aqueles que mais precisam de uma nova chance.

(*) Amarildo Luiz Trevisan é Licenciado em Filosofia no Seminário Maior de Viamão, tem o curso de Teologia, é Mestre em Filosofia pela UFSM, Doutor em Educação pela UFRGS e Pós-doutor em Humanidades pela Universidade Carlos III de Madri. Desde 1998 é docente da UFSM. É professor de Ciências da Religião e vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFSM).

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo