OUTRO OLHAR. As mudanças na “Lei Kiss”. Agora, nome é “Lei Quis”. Ou “Lei Schirmer” ou “Lei Sashi”
Por ANDRÉ PEREIRA (*), originalmente publicado no jornal eletrônico SUL21
No dia 30, tristemente voltou, com força máxima, ao cenário parlamentar de nossas excelências da Assembleia Legislativa gaúcha uma nova tentativa de afrouxamento da chamada Lei Kiss, elaborada após o vergonhoso assassinato de 242 pessoas e o atentado contra outras 636 vidas que escaparam, milagrosamente, da morte pr02ovocada pelas chamas e fumaça do sinistro de 27 de janeiro de 2013 na boate de Santa Maria.
Desta vez, a trama foi muito bem sucedida: 39 deputados aprovaram uma nova lei sugerida pelo Piratini e sua base para gaudio do lobby das construtoras , incorporadoras, imobiliárias e todos que consideravam a Kiss rigorosa demais em suas exigências de segurança.
Solitário, Pedro Ruas do PSOL foi o único voto contra a deformação.
A bancada do PT se absteve de votar e na verdade seus votos não fariam a menor diferença na contabilidade total da votação.
Só Adão Villaverde, autor da Lei atualizada em 2013, alertou, em vão, da tribuna do plenário, para os sérios riscos da mutilação técnica da legislação, com a “ mudança equivocada e temerária produzida pelo PLC 76/2016”.
São gravíssimas as deformações propostas pelo Projeto de Lei Complementar que, somadas e associadas, podem subverter a essência da lei de priorizar a preservação de vidas, evitando possibilidades de repetição de tragédias. A nova lei exclui todas as tabelas referenciais para o enquadramento das edificações. Isto significa que deixam de existir os parâmetros da ABNT, através de suas Normas Técnicas, que possuem comprovação científica, dando lugar a outros possíveis parâmetros que serão editados através de Resolução Técnica a ser expedido pelo Corpo de Bombeiros. Tal situação demandará tempo e pode causar riscos, durante o lapso para a sua edição com a falta de padronização de critérios, aos usuários das edificações e exposição dos CBMRS a toda sorte de pressões. A legislação retira as expressões “prevenção e proteção contra incêndios” mantendo apenas o conceito de “segurança contra incêndios”, deixando à revelia todo o processo educacional de conscientização da importância da legislação e do incentivo à pesquisa para qualificação da mesma.
Mais preocupante ainda: também elimina o critério técnico da carga de incêndio que é a soma das energias caloríficas possíveis de liberação pela combustão completa de todos os materiais combustíveis em um espaço, inclusive os revestimentos das paredes, divisórias, pisos e tetos. Descarta dois outros quesitos (quantidade de pessoas e ocupação e uso de construção). Agora voltam a prevalecer apenas os critérios de área e altura, que são insuficientes para uma avaliação correta do potencial de queima das áreas a ser avaliadas, além de serem injustos quanto à aplicação das medidas de segurança e prevenção contra incêndios. Há um exemplo abismal : de novo, como na lei antiga, dois prédios, com áreas de 750 m² e 12 m de altura, que fabriquem produtos tão opostos como gelo e pólvora, terão o mesmo tratamento de prevenção e segurança contra incêndio!
Há outras dilacerações significativas, como a eliminação dos prazos de adaptações das edificações, de uma lista impressionante de desmazelo.
Ou seja, é uma colcha de retalhos desconectada da valiosa construção feita por uma Comissão Especial no mesmo Parlamento, durante todo o ano de 2013 até a sanção da lei em dezembro.
Foi jogado no lixo o trabalho de especialistas qualificados no tema (como, por exemplo, o professor e engenheiro Telmo Brentano, autor do compêndios e manuais sobre prevenção e segurança de incêndio).
E sumiu no ralo o resultado de aprofundadas audiências públicas em que a sociedade e todos os segmentos se manifestaram.
Então, manifestou-se, esperançosa, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (Avtsm) que agora, indignada e revoltada, lamenta que nada foi retirado de positivo do morticínio. Os deputados que aprovaram a lei “para agradar empresários abriram lacunas na lei criando o cenário para novas tragédias”, como pontuou o vice presidente da entidade Flavio da Silva.
A bem da realidade, a Lei Kiss jamais foi de fato implementada porque o governo Sartori não executou providências importantes e imprescindíveis determinadas pela legislação, deste modo contribuindo para o atraso na liberação de licenças e motivando critica equivocada “à burocracia” culpando pela demora nos licenciamentos e alvarás.
“O governo estadual não contratou engenheiros ou arquitetos para compor o Corpo Técnico. Não conveniou com entidades de profissionais (como Crea/RS, sindicato de engenheiros e arquitetos) e nem com os municípios. Não convocou os 600 bombeiros aprovados no último concurso de 2014 e não implementou a necessária informatização sugerida por nós para imóveis de baixa e média periculosidade”, explicou o deputado Villaverde.
Além do predomínio de razões financeiras, outra forte motivação que animou a flexibilização é gorda impunidade que cobriu o caso.
Ao contrário da responsabilização que ocorreu com sinistro similar na boate da capital argentina República Cromañón, em 2004, que resultou no impeachment do prefeito de Buenos Aires, por 198 mortes, aqui selou-se a conivência irresponsável sem a mínima preocupação de eliminar o jeitinho que mata.
Foram arroladas ao final do processo de Santa Maria apenas poucas pessoas de uma enorme cadeia de culpados, por equívocos, desleixos, omissões e incompetências.
Exatamente os mais frágeis da corrente, os músicos e os donos do estabelecimento é que foram acusados.
E quem deveria fiscalizar o prédio? E quem autorizou o funcionamento? Quem projetou a estrutura da caixa de cimento que asfixiou tantos?
E de que lado, na batalha pela existência, se posta nossa brava mídia nativa, entre quais reluz um conglomerado de negócios de commodity de notícias, cujo discurso de marketing público afiança que se ampara no slogan “juntos para entender; perto para transformar”? Do lado dos anunciantes, ora bolas. E quem são os patrocinadores- ouro da mídia, senão incorporadoras, construtoras, empresas de engenharia que constroem edificações e vendem imóveis?
Assim, à impunidade institucional, à incúria governamental e à pressão econômica empresarial se agrega uma comunicação choro de crocodilo (socialmente descompromissada), que não contribui sequer para a criação da massa crítica fundamental para uma mudança cultural e preventiva na defesa da vida.
A legislação que havia sido nomeada em alusão à boate, agora passa a ser chamada apropriadamente de “Lei Quis”, em referência à vontade de quem quis a volta do regramento legal passado, que carrega os mesmos perigos de outrora. A lei é de quem quis apequená-la em nome de uma celeridade nos negócios, como se os quesitos de segurança fossem meras moedas de troca em que a existência tem menos valor que metros quadrados de concreto armado.
Mas eis que, em uma ousada manobra surrealista, o gringo gente boa, cujo partido é o Rio Grande, tratou de piorar o que parecia impiorável na última sexta-feira (2 de setembro). Em meio ao caos da criminalidade crescente no estado, nomeou o próprio prefeito da tragédia como secretário estadual de Segurança Pública que, pasmem, será comandante em chefe do Corpo de Bombeiros.
Por ironia ou deboche, candidatou-se a nomear a legislação de outro modo, talvez Lei Schirmer. Ou Lei Saschi, em homenagem às silabas iniciais de seus sobrenomes.
O certo é que continuar a chamá-la de Lei Kiss é uma ofensa à memória dos que perderam a vida, dos que sobreviveram e de todos que choraram lágrimas verdadeiras dimensionadas pela tristeza da tragédia.
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(*) André Pereira é jornalista e atua na Assembleia Legislativa, depois de ter passado, por muitos anos, pelas redações de jornais, entre os quais Zero Hora
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