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O telefonema e o banho – por Alice Elaine Teixeira de Oliveira

alice– Alô! – Ella atendia ao telefone desta maneira desde criança. Um simples sinal de que havia disponibilizado sua atenção e que aguardava, em seguida, a próxima frase do outro lado.

– Com quem estou falando?

Silêncio. É a pergunta mais absurda que já ouviu, afinal, quem é que liga para um número nunca divulgado numa lista telefônica, o qual poucos conhecem e que pertence a alguém que há anos mora sozinha, num mesmo endereço, enclausurada dentro das paredes de sua casa?

– Isto só pode ser uma brincadeira, ou um engano. Você ligou para o meu número de telefone e não sabe quem eu sou? Procure alguém mais disposto para importunar…

– Desculpe, Srta. Josephson. Não desligue o telefone. Trata-se de algo de máxima importância! O Sr. Parker deseja marcar um encontro com a Srta. o mais rápido possível, porém, não posso adiantar o assunto, porque ele não disse nem para mim, e não entendo porque isso agora, pois sempre cuidei de toda agenda dele por todos estes anos. Sou de máxima confiança. Sou eu que levo e busco seus ternos de linho da lavanderia, encomendo os novos ao seu alfaiate, sei todas suas medidas, faço seu café e sirvo seu almoço, compro os presentes para a família e…

– Por favor, seja mais objetiva. Parker quer marcar um encontro onde e a que horas?

– Me desculpe novamente, Srta. Josephson. Eu ando meio nervosa e preocupada com as atitudes do Sr. Parker. Ele tem andado muito estranho, ultimamente. Chega no escritório tarde, e fica o dia todo ao telefone. Quando entro para lhe oferecer algo ele apenas acena com a mão, mandando-me sair. Se levo uma xícara de café, ele indica com os olhos onde devo deixá-la…

– Ah, é mesmo? E como vão seus pais, o nome do seu animal de estimação, ou quem sabe gostaria de me contar a história de sua vida desde o dia do seu nascimento? – Ella parecia perder a paciência com a garota falante e prestativa, porém muito dispersa.

– Perdão! Perdão! O Sr. Parker pediu-me que lhe passasse o seguinte endereço: Rua da Praça, nº 1976. E disse que estaria esperando no horário de sempre.

– Obrigada!

E, antes que a carente e esforçada secretária lhe desejasse um bom dia, desliga o telefone já pensando no possível assunto que seu advogado mais antigo teria para tratar com ela assim, com tanta urgência.

Levanta da poltrona e, com uma expressão de curiosidade e apreensão, caminha pela casa sem pensar para onde está indo. A única coisa que perturbava a sua mente é o assunto sério que a aguardaria sentado numa mesa de bar, perto do porto, e apenas uma hora e quinze minutos a separa de estar frente a frente com o dito cujo.

Chega ao seu quarto e em frente a sua king size os seus pensamentos borbulham. Qual seria o problema tão sério que se apegaria ao seu tornozelo, como os grilhões de uma bola de ferro? Quem seria seu carrasco, agora? Pensou que estava livre de todas as agruras da vida. Que havia acabado suas guerras e seus conflitos externos. Há muito vivia calmamente em sua casa, com sua sombra, seu reflexo e sua gatinha…

Ah, a doce Lady, um exemplar felino sem raça definida, igual sua dona que não se dizia branca, preta, amarela ou parda. Animal dócil, pelo curto, um tanto agitada por ter esta característica. Boa caçadora, ela trazia seus troféus até os pés e olhos da patroa: ratos, mariposas, pássaros e insetos em geral. Lady sempre foi sua amiga e companheira, dorme ao seu lado à noite toda e é verdade que em noites muito frias ela prefere dormir sobre e não somente ao lado. Este bichano tem sido sua grande companhia durante estes últimos dez anos, sem trazer-lhe problema, apenas divide sua vida e conquistas de maneira simples e sincera.

Agora, Lady, que está sobre a cama, a olhava fixamente, como que entendendo sua aflição. Lê em seus pensamentos o pânico em deixar seu refúgio e aventurar-se novamente pelas ruas de histórias antigas e vielas esquecidas. Emite um miado, quase mudo, para consolar seu coração aturdido e que bate descompassadamente, como que dizendo entender todo este turbilhão de emoções e angústias.

A mulher, que com tanta frieza e objetividade, tratou a moça ao telefone, desaba sobre sua pequena amiga, desmanchando-se em lágrimas, que correm pelo lombo de Lady. Esta, pobre amiga, pequena em tamanho, porém gigante no seu coraçãozinho animal, ronrona no instinto de agradecer o contato carinhoso, é uma recíproca de confiança e cumplicidade.

Quando se recupera do rompante, limpa suas lágrimas, do mesmo modo que Lady inicia o seu ritual sentando-se e calmamente começa a lamber suas patas e seu pelo molhado de pranto, como se tentasse ensinar a lição de que a paciência e a abnegação restabelecessem à vida o seu curso normal. Ella compreende e entra no seu próprio banho quente, pois a gatinha é esperta.

A manhã estava um pouco fria, e um banho quente, após toda aquela descarga de adrenalina, é mesmo convidativo, então liga o chuveiro e espera a água aquecer.

O vapor passeia pelo chão como uma bruma quente, espalhando-se por todo quarto de banho, embaçando os espelhos, flutuando e expandindo-se, criando uma atmosfera de conforto celestial.

Deixa a água quente cair sobre sua omoplata e escorrer pelo corpo como numa cascata. O banho de banheira é muito bom, mas parece-lhe que, ao chuveiro, a água que adentra o ralo carrega todos os seus problemas e preocupações.

Com sabonete líquido e esponja macia faz movimentos circulares para massagear e aumentar a circulação do sangue, aprendeu desde menina a se cuidar. Sua mãe era uma linda mulher, vaidosa e elegante e foi com ela que aprendeu que este momento, ao banho, é muito mais que o ato de lavar-se, aprendeu que é um momento de cuidado pessoal, de se reconhecer sem os disfarces. Não há como esconder-se do reflexo, mesmo que úmido, do vidro do box. Ali, nua, não há como fugir da verdade. Cada parte de seu corpo está descoberta e precisa ser repassada, com delicadeza e esmero. O cabelo deve receber seus cuidados tanto quanto os tornozelos e pés.

Na mente repassa sua infância e seus momentos de alegria. Tinha uma família feliz, ou pelo menos é o que sua cabeça infantil pensava ser. Logo que começou a crescer e tornar-se uma adolescente, foi dando-se conta que aquilo no qual ela achou ser a sua vida poderia ser apenas um faz-de-conta. Mas isso não a impediu de amar sua mãe e seu pai.

Nunca teve irmãs ou irmãos. Desde pequena sentia-se única e um tanto quanto só, mas apenas quando seu mundo virou de cabeça para baixo com o acidente trágico de seus pais, é que, realmente, descobriu e sentiu-se sozinha de verdade.

Tentou retirar estes últimos pensamentos da cabeça, murmurando algo como: “Por que fui lembrar disso agora?”

Desliga o chuveiro e enrola-se numa linda, felpuda e macia toalha de banho. Já em seu Closet, notou que algo está faltando, nesta manhã. É verdade que não está sendo uma manhã qualquer, mas ela sente um vazio enquanto veste sua roupa.

De repente ela descobre o que é: música!

A música é sua grande companhia, assim como Lady. Há música por toda sua vida, uma trilha sonora de ritmos, movimentos e interpretes. Os vizinhos talvez a descrevessem como uma pessoa soturna, muito reservada e até mesmo antipática, mas isso era apenas uma fachada de proteção, uma muralha de pedras frias que escondia a sua verdadeira beleza, Ella era como os cristais de ametista no interior de uma rocha opaca.

Na realidade, sempre foi uma menina doce, meiga, esperta e madura. Desde que passou a esconder-se, sua gentileza era dividida apenas com sua gatinha, sua esperteza era utilizada para desvendar palavras cruzadas e romances policiais, e a maturidade lhe dizia para mudar algo, dizia que faltava algo além da música, não apenas naquele momento, mas na sua vida de agora, porém, depois te todo este tempo isolada do mundo lá fora, cresceu dentro de si um inimigo: o medo.

Colocou sua música preferida para tocar em alto volume, porém os vizinhos não escutam sequer um som provindo daquela casa, o isolamento acústico é muito bom. Gosta muito mais de Rock do que qualquer outro ritmo. Escolhia o que queria ouvir e em certas ocasiões ouvia repetidamente a mesma música ou uma seleção delas.

O compasso acelerado, a voz gritada, a bateria pulsante e os acordes da guitarra fazem com que se sinta viva e dinâmica. Tem sido assim, por anos a fio, vive numa bolha uma vida que julgava ser feliz e completa.

Interage com as letras, emociona-se, chora, e canta seus trechos preferidos. Algumas destas melodias a fazem até gritar junto com o cantor uma palavra que passa, por anos, presa na garganta. É seu desabafo abstruso numa interpretação, é algo que por anos a consome como um braseiro aceso.

O relógio continua marcando o tempo que não volta, avança constantemente, contínuo e carrasco. Agora, não tem tanto tempo quanto antes. O espelho marca o tempo com outra medida, mas continua contando, como o grande Big Ben em sua torre.

Volta ao telefone, confere a tecla memorizada e chama um táxi. O atendente da companhia lhe garante que o carro estará no seu portão em 20 minutos.

Enquanto espera, termina a maquiagem e o arruma o cabelo. Desliga a música e a sensação de algo faltando lhe assombra a mente outra vez.

Afaga o dorso arqueado de Lady enquanto calça seu sapato de salto. Abriga-se com uma pashimina e protege-se do sol com seu óculos escuro. Convence-se de que está pronta para enfrentar o mundo lá fora.

Confere a bolsa, abre a porta e hesitantemente sai.

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