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Fluidos – por Bianca Zasso

Equilíbrio. É o desejo de muitos na vida, no amor e na arte. Mas será que é sempre tão importante uma equivalência de qualidade entre roteiro e fotografia, por exemplo, para que a experiência cinematográfica seja satisfatória? Se a primeira frase desse texto falava em desejo, vale lembrar que nem sempre somos capazes de realizarmos todos os que temos. E nem por isso a vida é menos divertida.

Grave (título apelativo para o original Raw), estreia em longa-metragem da cineasta francesa Julia Ducournau, encaixa-se no quesito sorte de principiante. Depois de um curta e um filme para a TV, Julia chegou ao Festival de Toronto com seu filme de terror sem grande alarde. Só que a notícia de que algumas pessoas passaram mal durante a exibição bastaram para que ela entrasse na pauta do dia. É inevitável que a atração pelo grotesco faz parte do ser humano, em diferentes dosagens, e isso colaborou e muito para que a distribuição do filme fosse mais abrangente. Uma amostra disso é que, pouco mais de um ano depois da estreia, Grave já está disponível na plataforma Netflix.

Divagações à parte, vamos ao filme. Justine (Garance Marillier), a protagonista, entra para a faculdade de veterinária onde já estuda sua irmã, Alexia (Ella Rumpf). Até aí, tudo muito realista. Mas o pé no realismo fantástico será colocado sem muita preparação do espectador. Ressalto: apenas um pé, pois o outro ficará firme na realidade, que é justamente o que causa mais impacto em Grave. Submetida a uma série de atividades constrangedoras que fazem parte do trote aplicado nos calouros, Justine, que foi criada numa família vegetariana, é obrigada a comer um rim de coelho cru. Apesar de protestar, acaba cedendo. É o ponto de partida de um novo comportamento. Justine começa a sentir necessidade de comer carne. Crua. Qualquer carne. Até humana.

Grave não é inovador em utilizar o canibalismo como metáfora da descoberta da sexualidade. A protagonista, muito bem interpretada, aliás, segue ao extremo o perfil clichê da menina estudiosa e virginal que vai, aos poucos, mergulhando em seu novo “vício”. Essa transformação dita também a mudança de ritmo do filme, que ganha uma paleta de cores mais fortes em contraponto com os tons desbotados das primeiras imagens. Envolvida numa atmosfera de pontos vermelhos, desde a sutil cor de sua mala até a luz que ilumina um corredor inteiro, Justine se descobre um monstro. E para por aí sua descoberta. A diretora, não se sabe se por falta de verba ou de criatividade, coloca toda a sua energia na parte visual do meio para o final da produção. No ponto onde devíamos intensificar nossa simpatia pela personagem principal, ela deixa de se mostrar. É, sem dúvida, a melhor parte visual do filme, onde os fluidos corporais (saliva, lágrima e, é claro, sangue) que permearam toda a história brotam aos borbotões. Faz lembrar o clássico Martin, do saudoso George Romero, também jovem e sedento de veias que saltam.

Essa pouca dedicação a construção da empatia de Justine com o espectador é o que torna Grave uma experiência incompleta. Óbvio que é, de longe, um dos melhores exemplares do horror do ano, fugindo do susto fácil e da trama caricata. Mas ao chegar na cena final, que deveria ser impactante, ficamos com aquela sensação de prato vazio e barriga roncando. Não estamos saciados, mas também não estamos mais morrendo de fome. A direção segura e sem medo da ousadia é sentida, mas pode ser lapidada em um próximo trabalho de Julia Ducournau. Esperamos que ela engula menos o choro e cuspa mais na nossa cara. No fundo, é isso que queremos num filme de terror. Por mais que nossos bons modos tentem provar o contrário.

Grave (Raw)
Ano: 2016
Direção: Julia Ducournau,
Disponível na plataforma Netflix

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