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Criança Interior – Pylla Kroth

De onde estou e de quem sou, resolvi voltar para trás. Vou para 1970. Tentar uma regressão. Concentro minha respiração entrando em meu corpo. Fecho os olhos e a cada inspiração vou me aprofundando cada vez mais. Muitos de nós têm medo de fazer isso, mas pra mim é chegada a hora de fazer este destemido e minucioso inventário do passado para conhecer a mim mesmo, pois se um ser superior me colocou no mundo certamente foi para realizar alguma tarefa, quero conhecer melhor meu instinto interior, desde os carnais, preparando melhor meu “retorno” ou “viagem de volta”.

Agora em estado de serenidade, vou relaxando meus músculos da face e do queixo, sinto muita tensão acumulada, vou aliviando o pescoço – sinto me carregando o peso do mundo em meu corpo – relaxo agora os músculos da barriga e das pernas desatando os nós acumulados, vou indo cada vez mais fundo. Agora já sinto uma luz entrando em meu cérebro. Primeira sensação de alívio são das cordas vocais e do peito. O coração bomba aliviado a luz do meu corpo. Paz.

Agora começo lembrar da infância e realmente não há limites para nossa memória. Podemos recuar no tempo, nascimento, útero e além do tempo.

Estou de frente a um aparelho de televisão assistindo a seleção canarinho ser tricampeã mundial na casa de uma vizinha, não muito distante de minha casa. Volto mais, o homem esta pisando na lua, muitas pessoas estão vendo comigo espantadas. Vejo Topo Gigio, Nacional Kid… Respiro suave e estou vendo um homem andar de bicicleta em círculos, sem parar. Alguém me entrega um folheto escrito em azul. Sigo voltando e agora brinco com os funcionários da empresa que está instalando postes de luz. Alguém me empurra para dentro de um açude, me confundo quando boio, me convenço agora nadando.

Brinco sozinho na terra, deitado, olhando o céu, a sensação é boa. Brinco de cantar com meninas que são minhas irmãs. Ouço passos de sapatos fortes na calçada, a mãe abre a porta e ele entra: é meu pai chegando de viagem, com uma mala grande, vamos ao encontro dele, uma das meninas chora e ele a pega rapidamente no colo e com a outra mão coloca duas em cada perna e eu em cima de seu pescoço e brinca com todos, puxa do bolso balas e diz para a mãe só entregar na manhã seguinte.

Volto ainda mais e estamos em cima de uma caçamba de um caminhão, com uma mudança, são pertences, não são muitos. Logo estou em outro lugar, uma casa amarela, e estou brincando em um monte de sementes armazenadas.

Agora em frente a esta casa, com as meninas juntas, para um ônibus, a mãe mostra uma criança pela janela, todos estão felizes. Dentro da casa ela abre um chambre azul e a criança chora e logo é acalmada. É minha irmã mais nova que acabara de nascer. Volto mais. A luz está cada vez mais clara, agora estou em um quarto de hotel, estou com medo, alguém me acalma e me transmite segurança.

Perdi a noção do tempo, estou novamente em um caminhão ou ônibus, no colo de alguém, mas em segurança, respiro novamente e sinto tranquilidade. Volto mais, agora estou com medo, fraco, mas muito fraco, não consigo respirar direito. Estou em perigo, penso que é hora de parar, mas logo alivia, continuo voltando. Agora choro e não consigo voltar minha respiração, sinto um solavanco e a respiração volta, estou dentro de uma bolha de água, sinto muito medo novamente, agora não lembro de ainda estar respirando, este sentido não existe mais, sinto mas não vejo imagens, como se não precisasse respirar.

Estou protegido, mas com fome. Agora a fome passa. Quero ficar agora aqui, é tão boa a sensação. Está seguro, quentinho, confortável. Sinto e vejo a luz novamente, alguém pede se quero voltar. Ouço o pedido mais alto “vamos voltar?”. Consigo falar e dizer que sim. Abro os olhos lacrimejados.

Ufa! Acabo de narrar uma experiência quase que indescritível. Fui até o útero de minha mãe. Acreditem, isso é possível! Tentando entender a vida. Se ainda não me tornei, espero um dia vir a ser o que é pra ser antes de apagar esta luz que me acompanha desde a barriga de minha mãe.

De setenta pra cá prefiro não contar muito de como vivi e de tudo que aconteceu comigo. Mas ainda guardo toda leveza de criança, essa fase que parece não ter fim, sou uma criança adulta. A cada dia parece um novo aprendizado. Dizem que a velhice se manifesta em forma de infância, agora escrevo como criança, leia quem quiser. Abraço meu travesseiro, chupo pirulito, tenho uma coberta só pra mim, passo a língua no prato de guloseimas escondido dos outros, choro de raiva quando sou vencido ou até por coisas tolas, brinco de casinha e papai e mamãe com minha esposa, às vezes sou Nacional Kid, brinco que sou Topo Gigio, gaguejo quando dou entrevistas, não admito quando estou com medo, esqueço facilmente o mal entendido com amigos, conto as estrelas do céu, sonho, acredito nos sonhos. Mas sei que sou adulto indo pra terceira idade.

Sendo assim, gostaria de dar presentes neste dia das crianças, mas não brinquedos: queria dar rios limpos, ar mais puro, comidas sem agrotóxicos e uma natureza melhor. Enquanto houver essa criança dentro de mim, terei esperança em um mundo melhor. E que não me tirem o doce, mesmo que isso seja fácil. Rezo a Deus. “Santo anjo do senhor, meu zeloso guardador, se a ti me confiou a piedade divina, sempre me rege, me guarde, me governe, me ilumine, Amém”.

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