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A insustentável dor do cotidiano – por Bianca Zasso

Ao observar as pessoas na rua em tempos de smartphones e redes sociais que clamam por fotos, é comum a seguinte cena: um grupo um tanto entediado aperta botões e, ao vislumbrarem o flash da câmera, abrem um sorriso como se a felicidade estivesse em promoção. Imagem pronta, é hora de fechar a cara novamente e torcer para conseguir postar o mais rápido possível. Daria uma comédia das boas. Essa cobrança por bons momentos “a todo momento” nos leva de volta para o começo da carreira de um dos diretores mais cruéis dos nossos tempos.

Michael Haneke não é sádico, mas sabe como deixar seu espectador massacrado após uma sessão. Seu primeiro longa-metragem, O sétimo continente, inaugura não só sua carreira no formato, mas também a chamada Trilogia da Frieza, completada pelos filmes O vídeo de Benny e 71 fragmentos de uma cronologia do acaso. E é uma estreia violenta, cuja sutileza da câmera torna ainda mais perturbadora.

Lançado em 1989, O sétimo continente não é indicado para um amador das telas, já que sua linguagem passa longe do comercial. Já na abertura vemos que estamos diante de uma produção preocupada com sensações. A apresentação dos créditos, com a câmera parada dentro de um carro que passa por um lava-jato, é angustiante e ganhará novo significado mais para o meio da trama, quando teremos uma nova visão da mesma sequência. O protagonista do filme é uma família. Tão unificada que seus lamentos são os mesmos, apesar de serem três pessoas de idades diferentes. O casal Anna e Georg, acompanhados da filha Evi seguem uma vida aparentemente pacata. Despertam às seis da manhã, tomam café e vão para seus respectivos compromissos. Essa é a superfície.

A repetição dessas imagens não acontece apenas para dar a ideia de rotina. Haneke quer nos colocar dentro daquela jaula onde se cumpre horários, compra-se comida e paga-se contas. Os números das máquinas registradoras e dos relógios ganham close-ups não à toa. Eles nos regem e chega uma hora em que não se pode disfarçar essa opressão. Evi diz estar cega para conseguir a atenção da mãe oftalmologista, Georg atura o trabalho para ganhar uma promoção e Anna tenta encontrar satisfação no preparo do jantar e no sexo mecânico com o marido. Não está nada fácil. Este mergulho no tédio movimentado dos personagens proposto por Haneke e sua câmera feita de detalhes fica impregnado em quem o assiste. Talvez por isso uma ponta de esperança dê as caras quando Georg pede demissão e a família decide se mudar para a Austrália depois de uma vida na Áustria. O que num drama hollywoodiano seria um recomeço ensolarado, em O sétimo continente é a intensificação das nuvens cinzentas. Muda o cenário, a dor é ainda maior.

O roteiro, assinado por Haneke, foi inspirado na notícia do suicídio de uma família de classe média que, observada de fora, parecia feliz e equilibrada financeiramente. Pai, mãe e filha da ficção também parecem “normais” e é justamente isso que os torna inquietos. A falta de razão na existência, a insatisfação inexplicável que aperta o peito dos três pode parecer um motivo não tão importante para uma atitude tão drástica. Mas Haneke não quer espectadores que se contentam com o que possuem. Eles não são seu foco. Ou melhor, até podem ser, desde que saiam da zona de conforto diante de seus filmes. O sétimo continente não é para tardes de domingo com cheiro de pipoca.

O diretor John Ford costumava dizer que nada é mais bonito na tela grande do que um rosto humano. Michael Haneke evita o rosto dos atores em O sétimo continente, exibindo seus pedaços menos expressivos, como mãos e pés. Talvez haja dor demais em suas faces e as lágrimas do público viriam cedo demais. Haneke é cruel. Gosta de nos ver chorar por dentro. E consegue.

O sétimo continente (Der siebente Kontinent)
Direção: Michael Haneke
Ano: 1989
Disponível em DVD no box Trilogia da Frieza, lançado pela Obras-Primas do Cinema

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