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A Despedida – por Pylla Kroth

Já me escapa dos dedos o número de amigos meus que não estão mais entre nós depois que passei dos cinquenta anos de idade, mas guardo com carinho tudo o que vivemos juntos e todos. Neste último final de semana, amanheci com a notícia de mais uma partida, esta se tratava de um amigo que, como eu, vendia sonhos, prazeres, ilusão e alegria na profissão. Dias atrás o encontrei na rua e batemos nosso último papo, o achei bem debilitado, porém confiante nas medicações e tratamento na sua luta contra um câncer, essa maldição que afeta terrivelmente a nossa civilização atual.

Antigamente, o câncer aparecia em pessoas mais idosas, segundo estatísticas, mas atualmente não escolhe idade e também está levando gente nova pra morada lá de cima. Basta entrarmos no supermercado e ver o que temos a disposição nas prateleiras: conservantes e toxinas enlatados e embutidos, frutas e verduras com agrotóxicos e vários “ensacados” industrializados. Triste realidade. No páreo ao lado correm as doenças cardíacas, decorrentes da velocidade do mundo, da ansiedade do corre-corre, associados à alimentação desequilibrada e a falta de tempo para o repouso, entre outras atribuições. Claro que isso não é um diagnóstico especializado, mas…

Se existe um programa terrível pra mim é velório e enterro, essa tradição da cultura ocidental, de culto ao corpo já sem vida por horas, que é coisa que não assimilo muito bem. Existem religiões que já abdicaram desses rituais, já fui em todo tipo de “velórios”, essa palavra que vem do nome “velas”, acesas para iluminar o falecido. Algumas crenças dizem que o espírito leva horas pra sair do corpo físico. O costume de permanecer de vigília ao redor do corpo por uma noite toda vem lá dos hebreus e é cultivado até hoje pelos católicos. Há outros que cremam os corpos reduzindo-os a cinzas, algo que até recentemente, 1964, a Igreja Católica não permitia que seus fiéis realizassem. Eu particularmente acho terrível, embora historicamente seja uma prática milenar e que é considerada por alguns uma das melhores maneiras de destinarmos os restos mortais dos entes queridos, em termos de praticidade e ocupação de espaço, entre outras razões. Poucos foram os velórios “bacanas” que fui. Talvez daí venha meu receio? O único “bom” velório que fui tratava-se de um ritual que “bebiam o corpo” em copos pertencentes ao defunto, largavam bebida no corpo presente na vigília, comiam de tudo e bebiam todas as bebidas adoradas pelo morto em vida.

Mas desta feita estava eu diante de mais uma despedida, e não tinha como deixar de ir à cerimônia, pois como em todos os velórios que vou, não é apenas pelo falecido amigo do qual apenas o corpo sem vida está lá presente para o qual já não faz diferença o que aqui foi deixado, mas pelos familiares e pelos vários outros amigos em comum aos quais nesta hora triste e difícil a presença e apoio dos amigos vivos prestando a ultima homenagem é importante e consoladora.

Eu já havia recebido a informação de que o falecido estava sendo velado no necrotério já às oito horas da manhã. Mas resolvi que iria até lá somente depois do almoço e da “sesta” pra não mexer com minhas emoções antes da minha refeição dominical, pois era certo que iria me emocionar, afinal foram tantas situações vividas juntos que nem tenho como enumerar.

Assim, era pouco antes das três da tarde quando resolvi encarar a situação. Dirigi-me até o local e, chegando lá as três e dez, me deparei com a capela fechada! Espantado, encaminhei-me até uma guarita na entrada, pedindo informações sobre o falecido fulano de tal cujo velório estaria acontecendo ali. De pronto fui informado que o corpo e o carro fúnebre acabara de sair, e que se me mexesse rápido provavelmente ainda pegaria o cortejo seguindo o féretro na Avenida Medianeira. Perguntei em seguida à mesma pessoa se saberia me informar onde seria o enterro, ao que ele me respondeu que ouvira que seria num certo Cemitério de São João, que ficava “lá pros lados da Faixa de São Pedro”.

De posse desta informação, embarquei no carro rapidamente e me fui apressado em direção à Avenida! Dirigi até a rótula da Ângelo Bolson e nada de encontrar o féretro e o cortejo de carros, e resolvi então pegar o atalho pela Walter Jobim que dá acesso a Faixa de São Pedro. Não deu outra: quando cheguei no trevo de acesso do Boi Morto, dei de cara com o carro fúnebre contornando. Esperei então o cortejo todo passar, fazendo minhas condolências iniciais sozinho dentro do carro e depois comecei a seguir a fila de carros por último, agora na velocidade de cortejo fúnebre. Nesse momento, já lembrei do amigo falecido que sempre dizia de mim: “esse magrão está sempre atrasado, exceto quando é pra comer em meu restaurante!” – este foi seu último negócio empresarial, um restaurante de delicias salgadas que eu costumava frequentar.

E lá fui eu seguindo atrás, até que o carro fúnebre aumenta a velocidade ao sair do perímetro urbano, e aí coloquei um rock no som do carro, em volume moderado obviamente, em homenagem ao amigo, e comecei relembrar das nossas façanhas. Mas quando me dei conta, já havíamos dirigido ao menos vinte quilômetros e nada do dito cemitério! “Que longe que fica esse “Rincão dos quietos” chamado São João!” pensei comigo, “vou ligar pra minha mulher pra ver se ela olha no mapa onde fica o lugar que estou indo!” Ela atendeu e me pediu cinco minutos e me devolveu a ligação me informando que não havia achado esse lugar, que talvez fosse algum pequeno cemitério que não aparecia no mapa ou pelo menos não com este nome. Mas nisso o cortejo diminuiu a velocidade e pegou uma estradinha a direita da BR rumo a um campo aberto. Fiquei intrigado pensando: Por que será este lugar? Teria o meu amigo parentes e jazigo de família por essas bandas?

Mas, enfim, ao dobrar contei dez carros no comboio e fiquei a me questionar. Mas só dez carros? Meu amigo tinha uma relação tão grande com minha cidade, suas casas, bares e restaurantes estavam sempre lotadas! E agora na despedida essa miséria de gente! “Ô povo ingrato mesmo!”, fiquei a esbravejar sozinho dentro do carro, desliguei até o som. Fiquei furioso, mas logo falei com o morto lá da frente: “Fica tranquilo amigo”.

Estou aqui em nome de todos ingratos, muitos deles eram bons amigos pra te pedir cortesias, mas eu estou aqui!”. Andamos dez quilômetros campo adentro e nada! Fomos dar numa encruzilhada e, como eu era o último da fila, parei pra pedir informação pra dois senhores que, com o chapéu na mão, respeitosamente, viam o cortejo passar: “Onde fica o tal cemitério São João, amigos?”, ao que eles me responderam que “faltam umas duas léguas, mais ou menos”. Para um gaúcho criado lá fora, bastou para entender que ainda tinham uns doze quilômetros pela frente. Dirigindo a trinta por hora, o jeito foi abrir a janela e contemplar a solidão do campo, me consolando que meu amigo estaria indo pra um lugar tranquilo e cheio de paz!

Passaram-se mais quarenta minutos e finalmente chegamos! Lá bem no alto de uma coxilha, avistava-se um vilarejo de meia dúzia de casas, uma igreja, um cemitério e um salão de baile, cenário típico de distrito interiorano. Os carros foram estacionando ao redor da igrejinha. Cheguei por último, estacionei a uns cinquenta metros do local a fim de dar uma arejada antes de ir de encontro ao meu velho amigo, agora no caixão, e fazer minha última despedida. De longe, não reconheci ninguém, nenhum amigo, e me pus a lamentar novamente e lembrar as palavras de meus pais: “Para fazer festa sempre temos muitos amigos, mas na hora triste, são poucos!”, mais uma vez eles estavam certos.

Vi de longe ainda quando pegaram o caixão e entraram na igreja, esperei uns segundos e por fim me encaminhei até lá e fui entrando pelo corredor. Dirigi-me até o caixão, este agora aberto. A emoção começou tomar conta de mim e larguei minhas lágrimas a cada passo em direção ao defunto. Enxuguei os olhos e tomei coragem de olhar.

Para o meu espanto, estava ali dentro do caixão um senhor já bem velhinho, de bigodinho, mas nem sequer um pouco parecido com meu velho amigo e que eu nunca tinha visto antes na minha vida!

Virei-me ainda estupefato diante da minha constatação e olhei para as pessoas presentes que me observavam, sem reconhecer ninguém! Apavorado e confuso, fui saindo de mansinho da igreja de São João, em meio ao olhar das dezenas de pessoas que ali estavam, e que seguramente devem ter pensado “Mas quem seria esse cabeludo aos prantos se despedindo? Seria um filho perdido do falecido que ninguém conhece?”.

Tendo já saído, voltei para o carro para me mandar dali, mas antes ainda perguntei para um senhor, que estava ao lado de fora fumando um cigarro: “Quem é o falecido?” Ele me responde: “Uai, é o “seu” Iraci, meu filho!”

Eu não sabia se ficava bravo ou ria de mim mesmo! Pois pasmem! Eu havia pegado o cortejo do defunto errado!

Olhei para o céu e prestei minha homenagem ali declarando minha boa intenção ao meu amigo, lhe pedindo desculpas pelo erro e o faço novamente aqui por escrito neste espaço.

Esteja onde estiver amigo “Aluisio”, Luiz Tronco, jamais esquecerei os momentos de alegria juntos compartilhados! Luz, muita luz! Tem festa no céu! Ainda não vou participar desta, mas um dia desses certamente não escapo de te pedir uma cortesia pra entrar em tua nova morada. Descanse em Paz! Grato e desculpe meus erros. Todos nós, teus amigos de Santa Maria, te agradecemos por ter existido em nossas vidas. Escrevo essas linhas finais chorando e sorrindo. Pois assim foi nossa convivência. Ao menos agora sei que aí no céu tu tens um sócio honesto, pois como tu sempre me dizias “o problema são os meus sócios nessa vida terrena”. Um dia a gente se pecha. Até breve!

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