Coluna

O bem, o mal e o mundo – por Bianca Zasso

Certa vez, na saída do cinema, ouvi um casal comentando sobre o filme que haviam acabado de assistir e o diálogo incluía frases como “que horror mostrar toda aquela pobreza”, “se eu quisesse ver favela assistia o telejornal” e “venho me divertir e só encontro desgraça”. Bom, tirando o fato que a dupla não deve sequer ter lido a sinopse do que ia assistir, dada a surpresa diante das imagens realistas da produção, fica claro que ainda há quem pense que cinema é mero escapismo.

Ele é também uma forma de sonhar e esquecer por algumas horas a realidade, mas também é uma das melhores formas de provocação, especialmente das cabeças mais dadas ao pouco pensar. Ettore Scola, falecido em 2016, equilibrava um talento para o texto cômico e a capacidade de filmar a realidade sem filtros. São essas as qualidades que ele imprimiu na película de maneira brilhante em Feios, Sujos e Malvados.

Lançado em 1976, esta talvez seja a comédia mais triste da Sétima Arte. Isto porque a história do beberrão e avarento Giacinto Mazzatella e os mais de quinze moradores de sua casa, que incluem filhos, sobrinhos, agregados e inquilinos, não usa panos quentes ou disfarces para apresentar a realidade dos habitantes de uma favela na cidade de Roma. Quem gosta de cinema europeu para desfrutar de pontos turísticos sem gastar com passagem de avião aqui terá uma surpresa extra.

A Itália de Feios, Sujos e Malvados é como o seu título. Enquanto Giacinto luta para esconder o dinheiro que ganhou na justiça após perder um olho durante seu trabalho, os que o cercam lidam com problemas que vão do estupro à prostituição, da fome à problemas com a lei. Isto porque Scola não escreveu o roteiro, que ele assina junto com Ruggero Maccari, pensando em lições de moral ou questionamentos sobre caráter. Seu trabalho consistiu em pegar a dura vida da periferia romana e elevá-la na quinta potência com dois objetivos bem claros: fazer rir e causar desconforto.

O espectador de Feios, Sujos e Malvados pode até não gostar do que vê, mas não vai esquecer tão cedo as imagens que estiveram diante de seus olhos. Apresentar uma família problemática, onde ninguém parece estar em busca de mudança, é uma forma de crítica a sociedade de consumo onde é preciso, acima de tudo, conseguir dinheiro para ter coisas. As coisas, no caso dos que rodeiam Giacinto, se resumem a um vestido novo para a amante ou um maço de cigarros.

Nenhum personagem no filme tem ambições maiores que a sobrevivência. E mais: o filme de Scola não tem vilão. Ou melhor, a vida, dura, triste, incerta, é a vilã. A ideia de que todos estão em busca da quantia que Giacinto ganhou é apenas uma estratégia para fazer a história andar, mas o que acontece entre a primeira e a última cena é o que importa. É nesse tempo que o diretor coloca os detalhes que nos fazem pensar, que causam aquela sensação estranha cada vez que a vontade de rir surge.

Como podemos rir da desgraça alheia? Como achar graça em um pai que abusa de uma filha aos olhos de todos na casa? Como soltar uma gargalhada diante de crianças que passam o dia dentro de uma espécie de galinheiro enquanto seus pais contam migalhas? A mise-en-scène é de comédia, o conteúdo é de tragédia. Um Nelson Rodrigues europeu com doses de escatologia. As imagens são tão realistas que quase podemos sentir o cheiro de lixo e fumaça que parece pairar sobre o lugar.

Se para alguns cineastas a contestação exige uma fotografia exuberante e movimentos de câmera rebuscados, Feios, Sujos e Malvados vem para provar que a simplicidade cênica pode impressionar muito mais. Poucas coisas tão tocantes passaram nas telas dos anos 70 quanto o olhar perdido da adolescente grávida buscando água que encerra esta obra crucial de Scola e do cinema italiano. Corrijo: do cinema mundial. Porque o cenário pode ser diferente, mas nossas dores, defeitos e problemas mudam quase nada. Você pode não ser aquela garota, mas vai saber o que ela está sentindo.

Feios, Sujos e Malvados (Brutti, sporchi e cattivi)

Ano: 1976

Direção: Ettore Scola

Disponível em DVD

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Um Comentário

  1. grande filme!
    observar a onipresença da “igrejacatólicaapostólicaromana” como uma testemunha que abençoa as misérias durante todo o filme, na forma da cúpula da catedral de são pedro (o monte ciocci, que serviu de cenário, fica a pouco mais de 1km do vaticano) e de um quadro com uma imagem da mesma dentro da casa da família…
    em um momento tenso do filme a cúpula é “duplicada”: a porta aberta mostra a cúpula e ao lado da porta o quadro mostra a ilustração do “real”…
    no final, as adolescentes grávidas buscando água têm novamente a catedral como fundo…

    scola deu sua cutucada silenciosa…

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