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Vira-lata – por Orlando Fonseca

Na linguagem popular, persistem inúmeras referências caninas para indicar conjunturas desfavoráveis: “matando cachorro a grito”, “no mato sem cachorro”, “não se dá chute em cachorro morto”, esta última para demonstrar alguma condescendência. Por outro lado, quando se quer dar uma mostra de elevação, de origem nobre fala-se em “pedigree”, “cachorro de madame”.

A verdade que me ocorre agora é que, nos últimos anos, as coisas em nosso país ficaram brabas pra cachorro. No entanto, às vésperas de mais uma Copa do Mundo, precisamos falar sobre o que o cronista Nelson Rodrigues denominou “complexo de vira-lata”. Desde a nossa Independência que, diga-se de passagem, foi no grito, intelectuais e artistas procuram uma alma para esse povo em transe.

Tudo bem, aquele brado de liberdade foi às margens plácidas do Ipiranga, e plácidos também eram os bois, plácidos os boiadeiros, e não sei se a comitiva de D. Pedro era menos plácida quanto às implicações do gesto. Aliás, a república também foi proclamada na base do berro, este militar, o que não é pouca coisa, como a História pátria tem registrado. Sabe como é, cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça.

Durante séculos fomos identificados pela atividade extrativista da nossa primeira commodity (modo de dizer, levaram na maior), o pau-brasil: éramos os brasileiros. Depois, o Romantismo elegeu o índio como o cerne da nossa nacionalidade independente, aliada à americanidade. Depois de idas e vindas, o modernismo das artes expandiu a ideia romântica, acrescentando os requintes da antropofagia – índios papando o Bispo Sardinha sem brasa -, e Mário de Andrade apresentou o protótipo definitivo: Macunaíma, o herói sem caráter.

A falta de caráter, no caso, não significa toda a lambança como a história política recente nos tem presenteado. O fato é que a miscigenação é que nos constitui, não apenas por razões genéticas, mas sobretudo porque importamos quase tudo de nossa cultura. Assimilamos e damos um jeitinho de transformá-la em brasilidade. E isso por uma razão que nos remete às reflexões do autor de “A vida como ela é”: achamos que o que vem de fora é melhor, que não temos capacidade para conceber máquinas, processos ou arte melhor do que europeus e norte-americanos. Como admitimos a priori que não temos um caráter, albergamos o que nos parece ter um caimento perfeito.

O instituto britânico Ipsos Mori acaba de confirmar, em pesquisa de opinião, jogando em nosso focinho vira-lata esta constatação, agora científica. Dentre 38 países, os brasileiros são vice no ranking do desconhecimento de sua própria realidade. África do Sul levou a taça da sem-noçãozisse. A pesquisa tem o sugestivo título de “Os perigos da percepção” e traz uma sondagem sobre temas como segurança, imigração, tecnologia, consumo de álcool, gravidez na adolescência e, enfim, muitas outras sobre as circunstâncias vividas em sociedade.

Nossa segunda posição reflete uma característica: a visão amarga sobre a realidade, muitas vezes superestimada, a tal ponto de desconsiderar que, em países mais desenvolvidos, também há problemas. Por isso a tendência de achar que a taxa de homicídios no país é a maior do mundo (é alta, mas estamos longe disso), e que vem aumentando, o que também não corresponde, pois é igual à do ano de 2000. Falta leitura, falta discernimento a respeito dos fatos. Um vira-lata analfabeto, ou analfabeto funcional, é o alvo preferencial do marketing político.

Eis o cenário perfeito para este ano eleitoral. As percepções equivocadas ensejam debates a favor de prioridades erradas. As notícias negativas, que chamam mais atenção, geram alarmismos desnecessários, ajudam a alimentar aproveitadores e suas soluções inadequadas.

É um osso duro de roer, mas a única forma de superar a vira-latice é disseminar a face verdadeira dos fatos, dimensionar a realidade em condições de se apresentar diagnósticos precisos e soluções exequíveis. Caso contrário, estaremos condenados a continuar matando cachorro a grito, assistindo de longe a briga de cachorros grandes.

OBSERVAÇÃO DO EDITOR: a imagem que ilustra esta crônica é uma reprodução da internet.

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