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Os Solanos – por Pylla Kroth

Era um ano de transição minha como artista. A Fuga e as posteriores 220 Volts e Chá Band tomaram rumos diferentes, cada qual pra um lado na estrada da vida. Mas o que fazer agora? O computador chegando e exterminando minhas outras atividades, que era de arte-finalista e impressos serigráficos, só me restou não desistir da música e formar minha banda solo.

Enquanto fazia experimentos com músicos locais para a formação, resolvi convidar dois amigos fãs que sabiam tocar minhas composições e várias outras, pra caírem na estrada comigo em uma temporada na praia de Garopaba, onde tinha e tenho ainda vários amigos nativos.

E assim, carregados de equipamentos, nos bandeamos para Santa Catarina, sem saber ao certo onde ficar, onde tocar e como sobreviver. Fomos apenas com uma graninha que arrumamos para pagar a gasolina em duas apresentações num shopping. Se não achássemos lugar para tocar, faríamos apresentações nas ruas mesmo passando um chapéu para angariar alguns trocados, esta era a ideia.

Chegamos lá e na primeira investida fui reconhecido por um dono de bar a beira mar que de pronto armou a jogada em troca de comida e bebida. Já seria um bom começo. E assim foi. Primeira noite casa lotada, nas outras três o Rock rolava solto com a participação de todos que por ali estariam veraneando.

Nas primeiras noites dormimos nos fundos do bar no chão da cozinha. Sobravam apenas três horas de descanso, pois as faxineiras chegavam cedo e tinham que preparar o bar que servia refeições no horário de almoço também. O dono do bar estava feliz da vida com os lucros e nos remunerava muito bem.

Certa noite, depois de alguns dias, atravessei a madrugada na praia com alguns argentinos roqueiros e assim que amanheceu o dia seguinte, comecei caminhar na praia em direção ao canto da baía onde os pescadores já estavam fazendo o arrastão. Mas na verdade o que me levou até lá foi uma pessoa que surgiu do nada enquanto eu caminhava, a qual me chamou atenção por ser uma figura diferente, intrigante e quando dei por mim eu estava andando atrás dele, seguindo-o inconscientemente e fui indo como se tivesse sendo atraído por alguma força incompreensível.

Passamos pelos pescadores e contornamos as pedras, ele a uns trinta metros na minha frente, cabelos longos, chegava até chamar a atenção pelo seu caminhar suave quase dançante. Segui em sua direção, quando de repente ele entrou em uma casa de dois andares que existe até hoje. Caminhei mais um pouco e senti um cheiro de café com torrada. Não titubeei em bater na porta da casa pra tentar obter uma xícara, talvez conversar com aquele curioso sujeito que despertara minha atenção de maneira inexplicável.

Toc toc toc. A porta se abriu, mas ninguém veio me atender, dei um passo adiante e avistei o interior da casa sem alguma alma viva. Pensei comigo: “Ué…Mas o sujeito entrou aqui!” Dei mais um passo agora dentro da casa e a porta se fechou sozinha, de um jeito estranho que me deu uma arrepiada até a medula.

Peguei na maçaneta da porta e sai, e quando me distanciei dois metros li na porta um cartaz em espanhol “alquila se” (aluga-se), o que me fez pensar que provavelmente eu me enganara e não havia sido ali que a pessoa que eu seguira entrara.

Por outro lado,  mesmo pensando que alugar este lugar devia ser muito caro em razão da localização e a proximidade do mar, no máximo uns 3 metros até estar praticamente dentro da água, mais tarde liguei para o número de telefone que estava na placa, a saber o preço do aluguel da dita cuja, mesmo que fosse apenas por curiosidade. Atendeu-me  uma castelhana e logo perguntei sobre a casa e ela marcou encontrar comigo em dez minutos no local para conversar a respeito. E assim foi. Fato é que achei engraçado a facilidade de negociação. Foram  apenas duas contrapropostas e a casa estava alugada por um preço bem razoável.

Ela pediu, porém, que só não dissesse para as pessoas onde era a casa que estávamos alugando e quanto estava pagando, pois esse preço ela iria fazer em especial para nós  por que éramos músicos e que aliás ela tinha assistido no Bar noite passada, blábláblá… enfim… brique fechado e foi aquela satisfação. De frente pro Mar, não podia ser melhor!

Não demorou muito para eu ir até o Bar comunicar meus comparsas de que havia alugado a tal casa. Foi ai que o dono apontou pro costão e me perguntou com os olhos esbugalhados: “Aquela casa?” “ Sim, aquela!”, lhe respondi sorrindo, sem entender muito o espanto, mas mesmo assim não perguntei coisa alguma, pensei que talvez ele estivesse pensando que não teríamos condição de pagar o valor do aluguel de um lugar daqueles ou qualquer coisa assim. E sem dar muita chance para mais conversas, empolgados com a novidade, fomos correndo pegar nossas coisas no fundo do Bar para fazer logo a “mudança”, pois a partir de então teríamos um lugar de luxo e com vista pro mar para ficar. Doce sensação!

Cada noite que chegávamos no bar para tocar, o dono perguntava se estava tudo bem lá na casa, com uma cara de desconfiado, o que eu novamente não entendia, pois estava tudo ótimo com a casa até então.

Certa manhã, porém, os guris me acordaram me dando bronca, alegando que eu tinha feito uma anarquia danada na cozinha e fora dormir sem arrumá-la. “Negativo”, respondi eu incomodado com a falsa acusação, “eu não fiz anarquia alguma! Mal entrei na cozinha!” Então desci do segundo andar, onde era meu quarto, e me dirigi até a cozinha para verificar o que estava passando e então foi aquele espanto! Parecia que um furacão havia passado por ali! Todas gavetas da mobília estavam abertas, pratos e panelas sujas e tudo mais em completa desordem, uma coisa impressionante!

Meus colegas nem aceitaram argumentos de que eu não tinha a menor ideia de como aquilo acontecera e se mandaram pegar um mar me incumbindo de limpar e organizar tudo-tudo. Mesmo inconformado com a injustiça, limpei e arrumei tudo e depois me fui lá pro bar almoçar. Cheguei e me diriji até o chefe e tive que desabafar: “ Tu nem sabes… Nessa manhã os guris me fizeram limpar toda cozinha lá da casa, me acusaram de ter feito uma anarquia por lá, e vou lhe confessar, eu não sujei um prato sequer!”.

Foi aí que ele olhou com os olhos novamente esbugalhados e soltou: “pois é, Magrão, era isso que eu estava esperando o momento certo pra te dizer… aquela casa lá é mal assombrada! Quem a construiu foi um artista plástico carioca, que morava em Paris e vinha somente veranear aqui, e ,infelizmente, em uma noite de orgia na casa alguns aproveitadores do pobre coitado, que era homossexual, o assassinaram, esquartejaram e jogaram seus membros por toda cozinha. Nunca mais alguém que sabe da história alugou a casa. Às vezes passa temporadas inteiras fechada. Agora pouco foi comprada por essa Castelhana que alugou pra ti. Pois nem ela se atreve ficar uma noite na casa. Dizem que o espírito dele esta lá ainda e ele não aceita deixar a casa.” Ouvi aquilo e pensei com toda serenidade sobre o fato, e pedi que ele não contasse para os meninos.

Depois deste fato ficamos tocando mais uma semana e ainda hospedados na casa e todas manhãs era aquela reclamação dos guris com a baderna que  supostamente era eu quem fazia a noite na cozinha, e que assumia, para evitar perder a casa e a companhia dos colegas. Eu enchia a cara tocando todas a noites propositalmente para não ver nada acontecendo.

Porém, numa das madrugadas, justamente a nossa última por lá, um dos meninos, ao ouvir uma barulheira na cozinha resolveu descer, decerto pensando em me pegar no flagra com a mão na cumbuca, fazendo “minha” bagunça. E logo subiu correndo de volta nos acordar, apavorado, branco que era um saco de farinha, tremendo, aflito e gaguejando ao contar: “Gente, acho que tem coisa muito errada lá na cozinha! As gavetas estão se abrindo sozinhas e as bocas do fogão estão todas ligadas.”

Pedi calma e desci com toda fé, desliguei as bocas de gás fechei as gavetas e subi de volta. “Tu tomou ácido ou bebeu demais! Tá tudo certo lá na cozinha. Vai dormir que amanhã temos que voltar pra casa e a estrada é longa.” Pela manhã nos acordamos com meu cachorro, que havia ido junto, num latido só, as gavetas da cozinha e toda casa aberta.

Na volta, já na estrada resolvi contar tudo pra eles, e a partir dali  fomos várias outras vezes para lá e desta vez com o nome da Banda já definido: OS SOLANOS! Esse era o nome do artista assassinado na casa, que não preciso dizer que não voltamos a alugar.

Porém, até hoje, quando passo por lá, paro na frente da casa e faço uma oração pedindo luz e agradecendo o proprietário pela hospedagem. Até hoje digo que foi ele que me atraiu naquela manhã que fui em direção da casa seguindo aquela pessoa que nunca mais vi.

Coincidentemente também nunca mais vi a casa aberta ou alugada. Espero que estejas em um lugar com muita luz SOLANO QUERIDO! Poucos irão entender das dificuldades que tu deves ter tido em aceitar tua partida. Foste um grande artista. Talvez daí nossa empatia no mundo dos vivos e mortos. Um dia a gente se pecha. Luz, muita luz!

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Um Comentário

  1. Lembro que na época em que tu e os guri haviam montado a banda conversamos sobre eu fazer a parte de divulgação da banda. E tu me contaste essa história, Pylla. Lembro-me muito bem que usei essa história fantasmagórica num release da banda, que acho que nem chegou a ser divulgado. Só que eu pensava que o dono da casa havia se suicidado. Mas lembro da história!

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