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Gravador de sonhos portátil – por Pylla Kroth

Lá por 1985 morei em uma “comarca” ou “república”, como costumávamos chamar o lugar onde dividiam moradia meia dúzia de estudantes, na rua Duque de Caxias, no Bairro Rosário, aqui da terrinha. “Um bando de barulhentos simpáticos e educados!”, ou assim definiam os vizinhos. Um Uruguaio, um Boliviano, dois da Capital, um Carioca, um Santa-mariense Raiz e o Magro aqui. Naquela casa sempre havia um cantinho para mais um, vários passaram por lá.

Numa ocasião o Santa-mariense Raiz apareceu em um final de tarde de domingo com seu primo, o qual havia ido visitar lá na Boca do Monte e que só tinha pisado por aqui até então para acompanhar sua família que todos anos vinha pra cidade na Romaria da N.S. Medianeira e agora havia sido convocado para prestar serviço militar e gostaria de dividir o aluguel com todos. Muito risonho, o rapaz tímido logo foi aceito pela tribo toda. Seu nome era Ricardo, ao que logo apelidamos de “Cadinho”.

Cadinho, um cara solícito e bastante prestativo, logo tomou conta da casa: lavava roupas e louças, cozinhava como poucos e muito atencioso nas atividades domésticas. Era um descanso pra aquele bando de barulhentos vagabundos que davam um dedo para apenas curtir um som, tomar umas biras e ficar passando o cachimbo da paz de mão em mão.

Não preciso dizer que eu era o cantor da casa, o carioca era o violeiro e os outros faziam uma percussão em instrumentos improvisados. Ali compus minhas primeiras canções, muitas delas sem registros de gravações até hoje. “Hey Bicho”, “Jesus Cristo”, “Bagana” e “Campos de Arroz”,  que ainda guardo na manga e talvez um dia ainda gravarei. Pois nunca pensei mais em mexer nessas composições desde uma fatídica noite em que não acabou em morte por pouco.

Era final de semana e nosso amigo Cadinho resolveu ficar na cidade na folga do quartel. Estava de caseiro, pois o restante dos moradores da casa foram todos para suas cidades de origem visitar suas famílias, aproveitando um longo feriado.

Dias antes aparecera pela nossa comarca um amigo e trouxera com ele um gravador Mitsubishi com microfone embutido, com a ideia de gravarmos as músicas que tínhamos feito e que ele nos ouvira executando alguns dias atrás, em um dos tantos jantares deliciosos regados a vinho que o nosso amado Cadinho nos preparava. Feito. Fizemos a “vaquinha” pro garrafão de vinho e começamos as “gravinas” logo ao cair da noite. Lá pelas 10 a vizinhança já tratava de bater na porta pedindo silêncio, ao que sempre obedecíamos, fazendo jus ao respeito dos vizinhos sobre os garotos “educados” da rua. A gravação saiu maravilha, uma fita Basf de 45 dos dois lados.

Houve então esta noite que Cadinho, sozinho, comprou um garrafão de vinho e se pôs a beber, e já tarde da noite saiu as ruas bêbado, mas tratou logo de voltar com a ajuda de um outro vizinho da esquina que o encontrou em um estado de embriaguez avançado lá pros lado da Acampamento. Colocou o Cadinho dentro de casa e foi embora. Ocorre que o Cadinho resolveu apertar o play de toca fitas que havia ficado por ali e agora nas caixas de som. Tracou-lhe em volume 10 a fita que gravamos dias antes. A vizinha com visita não aguentou e foi na janela e gritou várias vezes pra que parassem a cantoria e… nada! Não contente com o resultado e com a desobediência e agora puta da cara e com outro vizinho, este sim um carrancudo que nunca fora com a cara dos meninos, se dirigiram ambos até a porta da república e bateram uma, duas, três vezes sem ser atendidos. O carrancudo não pensou duas vezes e com o facão na mão tratou de demolir a porta da casa, quebrando a porta e adentrando. Para a surpresa deles era a gravação e não os meninos cantando. Cadinho “morto” de vinho no sofá, em estado de coma alcoólica, elevou a fúria do vizinho chato que, aproveitando a raiva, meteu-lhe o facão no aparelho de som, uma vez que se assim fizesse com o Cadinho seria homicídio na certa.

Aquilo tudo nos custou caro, o cara do gravador nunca conseguimos ressarci-lo, Cadinho teve que começar dormir no quartel e todos tivemos que abandonar a casa do barulho e da felicidade. Um trauma jamais esquecido por mim, que tive que tomar outro rumo também. Assim como todos da Casa da Dona Luiza. Metade dos que moravam comigo por lá já morreu. Mas as músicas ainda guardo vivas em minha memória e em meu coração. Ás vezes encontro algum amigo que frequentou aquela comarca cantando as músicas. E a pergunta é sempre a mesma: “nunca pensou em gravá-las, Pylla?” Ontem mesmo fui ali no posto de gasolina num passeio noturno costumeiro com meu cachorro e um velho amigo me confidenciou que o carrasco da Dona Luiza faleceu. E eu pensei … “saudades do nosso gravador!” Aguardem, vou gravá-las agora. E espero que todos gostem do barulho. Inclusive os que já partiram. Espero que o som seja ouvido no céu e na terra.

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