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Cabeludos da João Rolim – por Pylla Kroth

O ano era 1986, época em que eu trabalhava nas oficinas do saudoso jornal A Razão. Naquele tempo, morava em uma república com estudantes de todo lado, fato que já foi abordado aqui na coluna (os leitores mais atentos irão lembrar). Em uma tarde aparentemente igual a todas as outras, a secretária do jornal me comunica que estava a minha procura na recepção certo ‘turco’.

Pensei que pudesse ser o dono do bar aonde eu fazia minhas refeições, pois infelizmente estava devendo o pagamento do mês. No entanto, para minha surpresa era outro sujeito, um desconhecido. Nascido em Jerusalém, disse-me que gostaria de oficializar um convite para que eu fizesse parte de uma banda de rock que ele integrava.

Quem havia me indicado ao ‘turco’ era um professor de música da cidade, que ouvira o Magro cantar em um jantar de amigos. Olhei o sujeito da cabeça aos pés e fiquei desconfiado. De todo o modo, topei o desafio. Marcamos o encontro para o sábado seguinte na casa onde a banda tinha seu QG.

Cheguei ao local no dia combinado, em torno das 2h da tarde… Estou escrevendo esse texto e sou obrigado fazer uma pausa, pois começa a correr lágrimas dos olhos e meu coração parece parar por alguns segundos… Que doce lembrança!

Bati na porta e um cabeludo veio atender, sem dispensar qualquer atenção muito especial, o tal sujeito me convida para entrar rápido, pois estava em frente à TV, ele e mais algumas pessoas, torcendo pelo Brasil do Zico contra a França do Platini.

No tempo regulamentar da partida houve empate. Tensão na sala. Eu duplamente tenso – primeiro por estar em um lugar onde ninguém me dera muita atenção, e segundo porque também estava torcendo pelo meu país naquela partida tenebrosa.

Resultado final: o Brasil perde de 4×3. Fim de papo, vida que segue, eis então todos descemos até o local do ensaio – o quarto do contrabaixista da banda. 1, 2, 3, e o barulho começa! Óbvio que antes da prova final, já tinha recebido uma fita cassete com músicas do grupo. Quando cheguei lá, as canções já estavam na minha cabeça, prática adquirida após uma temporada em uma banda de baile, isso anos antes daquele ‘dia D’.

Abri o meu canto naquele instante e a partir dali construímos um dos trabalhos mais sólidos na forma da expressão musical roqueira, tratando-se principalmente da história da nossa Santa Maria. Foram três anos de THANOS e sete de FUGA, se não me falha a memória.

Ensaiávamos em todas segundas, quartas e sextas e também nos sábados a tarde, quando os ensaios eram liberados para a meninada apreciar.Tenho lembranças da frente da casa, do pátio e da garagem abarrotada com dezenas de meninos que hoje ainda mantenho relações pela rede social. Alguns já são avôs, e na época estava por lá, soltando os bichinhos.

Até hoje não consigo entender como os pais do baixista deixaram tudo aquilo acontecer ali. Mas alguém um dia me disso algo sobre isso: “por serem eles pessoas que gostavam de música e de cultura”. Santo Paco & Santa Clélia! Esse casal deveria ser canonizado pela memória cultural de Santa Maria.

Há uma divida impagável para com eles! E os vizinhos, então? Tinham tudo pra nos odiar devido à bagunça e ao barulho que causávamos, mas pelo contrário – todos nos amavam e nos amam até hoje! Certamente sentem saudades daquela época, assim como há um sentimento de orgulho (por muitos deles) pelo fato daqueles cabeludos terem realizados feitos incríveis para uma banda do interior do RS.

Com o tempo um dos vizinhos colocou uma cerca, isso depois de inúmeras visitas indesejadas da “bugrada fumaceira”. Assim como nós, que com o passar do tempo transformamos o quarto em um verdadeiro estúdio. Forramos as paredes com papelão, duplicamos as portas, rebaixamos o teto e colamos caixas de ovo pra melhorar a acústica. Tempos saudosos!

Foram mais de 500 shows, dois álbuns (LPs), duas coletâneas e vários sucessos emplacados nas rádios.

Desde que a banda acabou, e isso já faz um bom tempo, esse grupo já foi citado em vários documentários e pelo menos em dois livros. Foi tema de vários TCCs que contam a história do rock santa-mariense. “Saudade”, um dos maiores sucessos do quinteto, ganhou inúmeras versões por vários artistas gaúchos.

Até hoje, músicos de várias partes do país a continuam revisitando. E o mais incrível, ainda é fato de grandes músicos de hoje confessarem que começaram suas brilhantes trajetórias no rock e na música sob a influência dos “cabeludos da João Rolim” (referência ao nome da rua onde se situava a casa onde tudo começou).

Eu particularmente nunca parei de cantar. Rumo a meu quinto trabalho solo, com milhares de shows realizados, ainda sinto que há lenha pra queimar. Dias atrás, meus “misifios” (que é como chamo meus filhos da música), se bandearam para a cidade de São Paulo, e por lá eles se apresentam dizendo com orgulho: “somos de Santa Maria, Rio Grande do Sul! Cidade da banda Fuga!”. E de lambuja ficam sabendo que o cabeludo Pylla ainda vive. Sendo assim, foi solicitada minha participação em diversos shows na Terra da Garoa.

E lá estou indo eu, carregando na mala toda essa história e toda uma geração dentro do peito estufado de emoção. Terei muito orgulho nesta sexta-feira, no momento em que colocar os pés em palcos paulistas, vou gritar em alto e bom som: “BOA NOITE SÃO PAULO, SOU DE SANTA MARIA, CIDADE DO INTERIOR DO RIO GRANDE DO SUL, E MEU NEGÓCIO É ROCK ‘N’ ROLL!”

Tenho imensa gratidão a todos que sempre estiveram ao meu lado. Rafael Ritzel, Gonçalo Coelho, José Ricardo Cacciari, Luiz Ernesto Cacciari, Nabhan Samhan, Wladimir Figuerra (Coco), e todos nossos pais que já partiram e os que ainda vivem. O rock vive e quando eu não estiver mais aqui, peço aos meus sucessores: não deixem o rock de Santa Maria morrer!

OBSERVAÇÃO DO EDITOR: a foto que ilustra esta crônica é de Rafael Ritzel

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Um Comentário

  1. Grita mesmo Pylla Kroth pelos teus amigos que foram a luta…Sonhos se transformam em realidade quando a gente acredita! Abraços a vocês todos!

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