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ARTIGO. Leonardo da Rocha Botega e o que une a brasileira Ivanice e o senegalês Fallou. Ah, e Aylan!

Imigrantes: o lugar do outro na propagação do ódio

Por LEONARDO DA ROCHA BOTEGA (*)

Ivanice Carvalho da Costa tinha 36 anos. Nascida em Amaporã, no noroeste do Paraná, aos 19 anos mudou-se para Portugal e ao longo de 17 anos trabalhou em um restaurante localizado no Aeroporto de Lisboa. No dia 15 de novembro de 2017, o carro em que estava foi alvejado pela polícia portuguesa, confundido com outro carro usado por ladrões que roubaram um caixa eletrônico na cidade de Almada. Seu companheiro não havia obedecido o sinal de parada, estava sem habilitação e sem seguro do carro (obrigatório em Portugal), pois não tinha dinheiro para pagar por estes serviços.

Fallou Ndack tinha 33 anos. Nascido no Senegal, chegou ao Brasil em junho de 2014. Como tantos senegaleses, haitianos e outros imigrantes, trabalhava como ambulante nas ruas de Cascavel, no Paraná. Mesmo imerso em um trabalho precário e de ganhos incertos, emprestou 50 reais para um ambulante brasileiro. No dia 24 de julho de 2018, após cobrar a dívida, acabou morto a facadas pelo mesmo ambulante. Seu corpo ficou mais de uma semana no IML, pois a família não possuía os 20 mil reais necessários para o translado do corpo.

Duas histórias, duas nacionalidades. Duas trajetórias diferentes, uma questão em comum: ambos deixaram seus países na busca de uma vida melhor. Uma busca que hoje é comum há quase 100 milhões de habitantes no mundo todo. Em comum também foi o desfecho trágico dessa busca. Ivanice e Ndack tornaram-se parte da estatística dos imigrantes assassinados, uma estatística que vêm crescendo a cada ano.

Em “O mal-estar da pós-modernidade”, Zygmunt Bauman, ao falar da condição de permanente movimento que marca a vida contemporânea, propõe como metáforas as condições de turista e de “vagabundo”. Os turistas são aqueles que viajam porque querem. Os “vagabundos”, aqueles que viajam porque não tem nenhuma escolha, os que assumem a contraditória condição de “turistas involuntários”. Em boa parte dos países, desenvolvidos ou subdesenvolvidos, os turistas são bem-vindos. Muitas vezes não por gosto ou vocação universalista de uma população, mas sim, por serem reconhecidos como consumidores, a materialização do dinheiro que circula sem fronteiras no mundo global. Os imigrantes, sobretudo, os refugiados, por sua vez, são “os vagabundos”, os que por não trazerem nada além do que a busca de uma melhor condição de vida. Os que são vistos por muitos como aqueles que nada têm a deixar, pelo contrário, muito têm a “tirar”. Uma visão deturpada que não corresponde com a realidade. Os imigrantes são os que se submetem mais facilmente às mais precárias condições de trabalho, seja no calçadão de Santa Maria ou nas prestadoras de serviço de limpeza em New York. Aqueles que, por 50 reais ou por não terem dinheiro para tirar a habilitação, estão sujeitos a perderem a vida.

Algumas vezes a condição do imigrante choca, como no caso do menino sírio Aylan, encontrado morto numa praia da Turquia em 2015. Porém, para boa parte das pessoas esse choque é temporário, não sobrevive para além da comoção midiática. Poucos dias após o desaparecimento das imagens nos televisores e nas Redes Sociais, a condição de “vagabundo” deixa de ser metafórica e ganha a materialidade dos discursos de ódio que crescem na mesma proporção que os votos nas extremas-direitas. Essas alimentam o ódio ao imigrante na mesma proporção em que alimentam a precarização das políticas sociais e a destruição dos direitos trabalhistas das populações mais pobres de seus próprios países.

Assim, os imigrantes são convertidos em párias por demagogos de plantão e suas simplificações. São vistos como o “outro” que produz valores nefastos a uma determinada “civilização”. Frases como “existe uma correlação clara entre os imigrantes ilegais que estão a inundar a Europa e a propagação do terrorismo” (Viktor Órban, presidente da Hungria) e “a grande maioria dos imigrantes em potencial não tem boas intenções, nem quer fazer bem ao povo americano” (Jair Bolsonaro, presidente do Brasil) cumprem esse objetivo. Sejam elas direcionadas aos refugiados sírios ou ao próprio povo que deixa o país na busca de melhores condições de vida em um país do capitalismo central, tais frases são instrumentos a serviço da naturalização dos preconceitos e da justificação dos atos de violência.

Paradoxalmente, esses mesmos líderes que pronunciam tais frases nada fazem quando se trata de enfrentar as verdadeiras espoliações que o capital financeiro internacional produz em seus países. Mas isso pouco importa! O que importa para tais pseudonacionalistas são as performances políticas que mantêm os seus apoiadores mobilizados e acreditando que, como diria Jean Paul Sartre, “o inferno são os outros”. Mesmo que o fogo da precarização global da vida continue a queimar a todos, independente de nacionalidades ou fronteiras.

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreverá no site aos domingos, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, doutorando em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

OBSERVAÇÃO DO EDITOR: as fotos que ilustram esse artigo são todas de Reprodução.

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Um Comentário

  1. Velho problema da distorção da realidade para caber na teoria. Brasileira morta em Portugal foi alvejada por engano, confundida com ladrões. Acabou sem vida porque o companheiro furou um cerco policial, não porque era imigrante. Além do que, não ter dinheiro para tirar habilitação não autoriza ninguém a dirigir sem a mesma. A lei tem que ser obedecida.
    Senegalês foi morto porque cobrou uma dívida, nada leva a crer que perdeu a vida por ser imigrante. Um nacional que cobrasse a dívida poderia acabar assassinado também (o que, aliás, não é incomum).
    Parece óbvio, imigrantes também são assassinados por estarem expostos a violência cotidiana do país em que se encontram.
    Nada de novo, mimimi ideológico com verniz acadêmico.

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