Vivendo e aprendendo a sangrar
Por BIANCA ZASSO (*)
A última premiação do Oscar, no último dia 24 de fevereiro, foi péssima em vários quesitos, como os leitores desta coluna bem sabem. Mas ao lado das várias mulheres negras premiadas e do troféu para Spike Lee por melhor roteiro adaptado, um grupo de mulheres que subiu ao palco para receber a estatueta de melhor documentário em curta-metragem já entrou para a história. Maya Zehtabch, americana de descendência iraniana e diretora de Absorvendo o Tabu, disse não acreditar que um filme sobre menstruação havia conquistado o Oscar.
Sim, nossa rotina de sangrar todos os meses ainda é um assunto para ser sussurrado entre amigas ou citado aos mais próximos utilizando pseudônimos. Os ditos modernos ocidentais ainda ficam cheio de dedos ao falarem sobre algo que é parte da natureza e entra cada vez mais cedo no cotidiano das garotas. Mas foi preciso viajar até o outro lado do mundo e apresentar uma realidade bem diferente para que a Academia, e muitos homens e mulheres, dessem a verdadeira atenção ao tema.
O pano de fundo é uma comunidade rural em Harpur, na Índia. As primeiras cenas mostram adolescentes e mulheres adultas sendo indagadas sobre seus conhecimentos sobre a menstruação. Tenham 15 ou 30 anos, a reação é idêntica: num misto de vergonha e curiosidade, elas riem como se estivessem diante de uma pergunta proibida.
Uma delas, enrolada em um cobertor, tem vergonha até de citar a palavra. Tudo isso porque nas vielas estreitas do lugar, menstruar não significa apenas a chegada da puberdade, mas o começo de um dilema. Ao contrário do nosso país, por exemplo, onde qualquer farmácia ou supermercado oferece dezenas de tipos de absorventes, na Índia é quase uma odisseia encontrar um pacote dos mais simples.
Ou seja, as mulheres precisam improvisar com panos, nem sempre higienizados da forma correta, e as manchas nas roupas e o desconforto é corriqueiro. Logo, já não se torna viável ir à escola, por exemplo. Sim, essas meninas abandonam os estudos porque começam a menstruar e uma roupa suja de sangue é uma vergonha muito maior do que não saber ler. E nós aqui no Brasil sofrendo com a dúvida se compramos com ou sem abas. Mas tudo pode mudar com a chegada de uma máquina. Inventada por um homem.
Absorvendo o Tabu utiliza muito bem seus 26 minutos de duração para mostrar a luta de um grupo de mulheres que ousaram mudar própria realidade. Por meio de uma linguagem direta, sem se fixar em apenas uma personagem (apesar do olhar especial que uma delas ganha, por mostrar interesse em tornar-se policial), o filme tem como objetivo principal informar o mundo sobre o quão complicado é menstruar na Índia.
Algo que deveria permear o cotidiano feminino sem grandes dramas, apesar das cólicas e desconfortos, tira o sono e afasta ainda mais as mulheres do convívio social e do mercado de trabalho. Sangrar, que para muitas tribos é considerado algo sagrado, em terras indianas é uma maldição.
Além de ser uma forma de geração de renda, a produção de absorventes pode significar uma mudança radical na saúde das mulheres indianas, que sofrem com a falta de acesso a produtos básicos de higiene e frequentes casos de infecções graves. Ouvir os sonhos e desafios enfrentados pelas novas empreendedoras é como conversar com uma velha amiga.
O desejo de liberdade e melhores condições de vida, o que inclui não ser escrava do casamento como único destino e garantir o próprio sustento são semelhantes aos vividos por centenas de mulheres, nos mais diversos cantos do planeta. A diferença é que um simples absorvente pode mudar tudo.
Produzi-lo é uma espécie de segredo, chegando ao ponto de algumas meninas mentirem sobre o trabalho para seus pais e tios. Aliás, os rapazes entrevistados demonstram uma falta de informação assustadoras. Como não arregalar os olhos diante de um adolescente que afirma que menstruação é uma “doença comum entre as mulheres” e de outro que estufa o peito para dizer que isso é um problema grave e que causa medo nos homens?
Se você, cara mocinha, da idade que for, da religião que for, descobriu a salvação dos seus dias sangrentos depois que começou a usar coletor menstrual ou opta por suspender a menstruação e não ter que esquentar a cabeça por cinco dias ao mês, pense duas vezes antes de criticar as “antiquadas” colegas de gênero que ainda investem no bom e velho absorvente externo. Na Índia, menstruar em paz é um ato de resistência.
Absorvendo o Tabu (Period: End of Sentence)
Ano: 2019
Direção: Maya Zehtabch
Disponível na plataforma Netflix
(*) BIANCA ZASSO, nascida em 1987, em Santa Maria, é jornalista e especialista em cinema pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Cinéfila desde a infância, começou a atuar na pesquisa em 2009. Suas opiniões e críticas exclusivas estão disponíveis às quintas-feiras.
Sim, todos preocupados com a menstruação das mulheres na India. Improvisação com panos? Acontece no Brasil hoje. Acontecia em quase todo o pais na década de 70.