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CRÔNICA. Orlando Fonseca e a contrariedade com a ideia da educação formal domiciliar: é “um arremedo”

Feita em casa

Por ORLANDO FONSECA (*)

O senso comum é uma ferramenta de interação social, útil e prática para o dia a dia. É o que nos dá base para o entendimento das circunstâncias a que nos submetemos na rotina. É por causa dele que não precisamos repetir a gramática da existência em comunidade, a todo momento.

No entanto, não costuma ser uma resposta para as grandes questões da vida, do mundo, universais, intangíveis. Pode até ser usado para dar início a uma pesquisa científica, mas não garante um resultado surpreendente no final. As grandes descobertas, as grandes invenções estão justamente na subversão do senso comum.

Até mesmo um simples texto, para ser encarado como artigo, crônica, ou mesmo redação do ENEM, precisa ir além do senso comum. Por isso, ao ver o Ministério da Educação (e áreas afins) com gente e propostas que se sujeitam ao senso comum, preocupam-nos os destinos deste item da vida republicana.

Falei tudo isso para comentar o projeto de lei do governo, democraticamente eleito pelo povo brasileiro, que trata da educação domiciliar. Estamos acostumados a ouvir: “educação vem de casa”, “educação vem do berço”. Se nos baseássemos apenas nestes aforismas, não teríamos discordância a essa política; acontece, porém, que a educação não pode ser entendida apenas na sua porção formal, nem na sua formação básica da personalidade.

De um modo amplo, educação deve compreender um regime de complementaridade: a família é responsável pela formação da pessoa para a vida social, e a escola para o apronto de suas habilitações para a vida profissional (“seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, como diz a Constituição). No entanto, não há exclusividade nos projetos: tanto a escola ensina para a vida cidadã, quanto a família aprimora as vocações para as atividades produtivas.

Quem está demandando uma educação formal em casa? Os que estão descontentes com a Educação Básica? Não apenas isso, mas são aqueles pais que desconfiam da doutrinação da escola, do tratamento às questões de gênero, que não aceitam posições científicas que contrariem a sua visão religiosa.

A educação é um direito de todos e um dever do Estado e da família, é o que diz a nossa Constituição. E por que isso? Porque o maior prejuízo que uma criança terá não vai ser em relação ao conteúdo das disciplinas, mas por não aprender a socializar os seus saberes, não aprender a conviver em um ambiente de produção do conhecimento. Poderá se tornar um excluído, ou alguém que não saiba conviver com as diferenças.

A educação formal do modo “feita em casa” será um arremedo. Em um ambiente estável como o lar (irmãos e pais vão continuar sendo assim), os conflitos não têm a mesma dimensão do vivenciado na escola. E são estes últimos que nos ensinam a vida na sociedade e no mundo do trabalho, pois se aprende a superar as divergências com amigos e colegas para continuar o convívio.

E o que mais espanta é que isso passa a ser tratado como política pública. Com o afã de “desideologizar” a educação, impõe-se uma ideologia de senso comum, não percebendo que se trata de uma atitude política conservadora, e por isso mesmo, retrógrada, sem a perspectiva de mudança para melhor. Ataca sintomas e questões acessórias, enquanto os grandes problemas, como investimento, reformulação de currículos que atendam às expectativas das novas gerações, qualificação do corpo docente, enfim… são deixadas de lado como coisas menores.

Certamente, a educação no país merece mais do que agradar pais que se desagradam da escola. E inclusive o trabalho de conscientizar esses pais é papel do gestor público, o qual deve empregar recursos no sentido de melhorar a escola e não encontrar mecanismos para que as crianças sejam afastadas dela, tanto pelo interesse fundamentalista de alguns, quanto pela falta de condições materiais de outros.

Disso depende o futuro da Nação, e não é um senso comum, é uma constatação baseada em políticas de longo prazo adotadas por países que detêm índices elevados de desenvolvimento cultural e progresso econômico.

(*) ORLANDO FONSECA é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e  Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

OBSERVAÇÃO DO EDITOR: a imagem que ilustra esta crônica uma reprodução de internet.

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2 Comentários

  1. Governo dia 11 passado editou o decreto 9.765 que instituiu a Política Nacional de Alfabetização. É só papel, mas alguém debateu o assunto, comentou o assunto?
    Debate sobre educação é raso. Pelo que dizem parece que já se sabe tudo o que se deve fazer e nos 100 dias daria para fazer horrores de coisas, colocar o circo na estrada e partir para o abraço.
    No final das contas não passa de uma tentativa de utilizar um assunto que só interessa minorias (gramscianos querendo ‘salvar’ os filhos dos religiosos) para desgastar o governo federal.

  2. Dando risada. ‘,sem a perspectiva de mudança para melhor’. E quem define o que é ‘melhor’? Os vermelhinhos?
    Projeto prevê cadastro do aluno no MEC, provas anuais de aprendizagem (dupla reprovação significa retorno a escola tradicional), plano pedagógico individual e registro periódico das atividades , dentre outras coisas. Ou seja, não é o que os vermelhinhos estão ‘vendendo’ (para variar).
    Socioconstrutivismo é teoria, não a lei da gravidade. Alás, avanço nas neurociências jogou na lixeira muitas teorias educacionais por aí. Países mais desenvolvidos fizeram adaptações, coisa que não aconteceu por aqui. Motivo? Educadores ‘deitados em berço esplêndido’ , preocupados mais com outras coisas (inclusive doutrinação) ou que se acham autossuficientes.

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