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CRÔNICA. Orlando Fonseca, os 30% de cidadãos de SM que vivem na linha da pobreza e o homem do lixo

Lições do lixo

Por ORLANDO FONSECA (*)

Fazendo minha costumeira caminhada, final da tarde de sábado, deparei-me com uma imagem chocante. A estas alturas da vida, e com tanta coisa guardada em minhas retinas, poucas circunstâncias têm força impressiva sobre a minha mente, não sendo nas páginas de um livro ou nas sequências de uma produção cinematográfica. Talvez por estar assim, tão inadvertido, com as ruas pouco movimentadas de Santa Maria, a cena ficou guardada pelo resto do caminho.

Ao entrar na Olavo Bilac, vindo da Serafim Valandro, logo à frente, agachado junto a um contêiner de lixo, um jovem comia sofregamente o que retirava de uma sacola de mercado, depositada sobre o asfalto. Não esboçava o perfil típico de mendigo, carregava uma mochila às costas, usava bermudas, uma camiseta cinza, e tênis. Ao me aproximar, percebi que o celular dele tocava, e vinha da mochila ou de algum bolso. Mas ele continuava a enfiar a mão naquele improvisado prato e retirar porções de algo que engolia apressadamente.

Foi o sociólogo Betinho, em sua memorável campanha de solidariedade “Natal sem Fome”, que declarou: quem tem fome, tem pressa. É certo que era exatamente isso que movia aquele jovem. Nessas condições, não se espera que alguém possa degustar algo, experimentar o sabor, verificar as condições de validade. O que importa é preencher o espaço interior vazio que, mais do que o existencial, incomoda feito perturbação mental.

Mobiliza os instintos mais básicos, minimizando as convenções e os protocolos, envolve com uma nebulosa tudo o que significa viver em sociedade, em uma cidade universitária, em um país da América do Sul.

A parte todos os motivos e circunstâncias individuais, não sei de quem se trata, sem que eu tivesse qualquer coisa que lhe pudesse estender para mitigar a fome, a não ser um resto de água, já choca, na garrafinha prosaica, o jovem pareceu-me o emblema de uma estatística que bate à nossa porta.

Já chega a 30% da população de nossa cidade a viver na linha de pobreza. E isso sabemos porque representam os que estão cadastrados no CadÚnico, ou seja, membros de famílias cuja renda mensal não passa de meio salário mínimo por pessoa.

Nesta semana, em que se comemoram os 131 anos em que a Princesa Isabel assinou uma lei, pretensamente para acabar com a escravidão no Brasil, trago esta minha impressão de que o Estado brasileiro, republicano, tem falhado em quase tudo. O último ato do Império deixou livres, mas sem dinheiro, sem educação formal, sem terra uma grande parcela da população brasileira.

E a história das Repúblicas, a Velha, a Nova, a Novíssima não tem apresentado soluções significativas para garantia dos direitos do cidadão, especialmente os de menor poder aquisitivo. No entanto, não é cortando as verbas que se vai melhorar o ensino superior no país. Não é acabando com programas sociais, atacando entidades assistenciais, fazendo limpeza ideológica que se vai melhorar as condições de vida de milhões de brasileiros, que vivem na linha de miséria. Trinta milhões tinham sido resgatados ao longo dos últimos anos.

De 2016 para cá, dez milhões voltaram para estas condições. Não é reformando a Previdência para favorecer o mercado de capitais, gerando maiores lucros aos bancos, que se vai melhorar as condições de vida dos trabalhadores, a custa de se criarem empregos que, como já se viu com a Reforma Trabalhista, é uma falácia.

Sabemos que não é com uma canetada que se acaba com as misérias sociais, está aí a assinatura da Lei Áurea, cujos efeitos plenos ainda estamos aguardando. No entanto, sei que, com uma canetada, pode-se condenar à morte milhares de crianças, milhares de trabalhadores, milhares de doentes nas filas do SUS.

Enquanto os programas sociais não passarem de boa vontade, vamos ver o bicho homem, em sua mais flagrante figuração, chafurdando em contêineres atrás de um pedaço de pão. E assim, serão muito maiores as dificuldades de se chegar ao animal político, ao cidadão, no exercício de sua dignidade humana.

(*) ORLANDO FONSECA é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e  Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

OBSERVAÇÃO DO EDITOR: a imagem que ilustra esta crônica é uma reprodução de vídeo na internet.

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3 Comentários

  1. Bah! Orlando. Já vi tanto disso e não consigo me acostumar…Daqui a pouco vamos ver gente morrendo de fome nas ruas…

  2. Mês de referencia: março de 2019. Total de pessoas cadastradas: 52533. Pessoas cadastradas em famílias com renda per capita mensal até 89 reais: 14602. Entre 89 e 178 reais: 10294. Entre 178 reais e meio salário mínimo: 15917. Acima de meio salário mínimo: 11720.
    Abaixo da linha da pobreza são os com renda inferior a 5,5 dólares por dia. Linha da extrema pobreza corresponde a 2 dólares por dia. Criterios do Banco Mundial.
    Santa Maria tinha em 2016 pouco mais de 277 mil habitantes. Somando o numero de pessoas no cadastro abaixo de meio salário mínimo chega-se a 40813 pessoas. Corresponde a 14,7% da população. Muitos recebem benefícios, a renda citada é a própria.
    Resumo da ópera: se os números existem e estão disponíveis, debate-se os mesmos.
    Quando se vê alguém catando coisas do lixo nem sempre o problema é renda. Pode ser outro problema, usuários de drogas também o fazem.
    O resto é mimimi. Ninguém muda de opinião com mimimi.

  3. Triste realidade que constatamos a cada dia crescendo. Mais triste ainda que já não nos impactamos tanto com essa realidade. Bicho-homem aquele que assistimos lutando pela sobrevivência na forma mais desesperada. E me pergunto se não somos mais bicho-homem do que aquele com nossa falta de espanto diante dessa realidade.

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