Política

CRÔNICA. Orlando Fonseca e a aliança que não deve trazer paz para o Natal das famílias brasileiras

Tudo é paz (?)

Por Orlando Fonseca*

Há alguns anos, ouvi de um médico plantonista que uma das épocas mais perigosas para as famílias é a das festas de final de ano. Otimista que sou, especialmente em relação aos festejos natalinos, desacreditei da informação. Mas ele reiterou que, pessoas que não se encontram há um ano, que têm pendências afetivas, reprimendas comportamentais ou tratativas de herança, estão a um copo ou mais para partir às vias de fato. Para mim, incorrigível crente na alma humana, é impensável que, ao redor da Árvore iluminada, em meio à distribuição dos presentes, da revelação dos amigos ocultos, da mesa farta com o peru recheado, o salpicão, o arroz à grega, o espumante, seja possível que o pior possa aflorar. Mas o meu amigo garantiu que os registros hospitalares estão carregados dessas ocorrências emergenciais. Na literatura sabemos, desde Aristóteles e sua análise da tragédia grega, que o melhor drama é aquele que carrega “sangue no seio das famílias”.

Fico imaginando, então, algo que virou tema de discussões em mesas de bar e rodas de amigos: as divergências ideológicas que se alastraram pelo país, desde o final do ano passado. Dos simples bloqueios nas redes sociais às separações espalhafatosas, muita gente abandonou amizades, rompeu laços afetivos e mesmo familiares. Filhos brigaram com pais, irmãos partiram para a ignorância (como se dizia nos velhos tempos) casais deram um tempo ou aproveitaram a deixa para a separação. Agora mesmo, leio em um site de notícias da internet, que o ator Bruno Gagliasso rompeu com o irmão, pelo fato de esse postar apoio ao novo partido criado pelo clã Bolsonaro. Neste confuso quadro de amizades desfeitas, acho um tanto irônico que o nome do partido tenha “aliança”. Ter o número 38 já não me espanta, e receber um quadro com o símbolo feito de cartuchos de balas constitui o emblema à perfeição do que vivemos, nos dias atuais, da vida republicana.

Um governo que entende resolver o problema da violência com mais violência, que não mede os gestos, desde as eleições, para se apresentar como combatente diante de todos os problemas sociais do país, vai estimular a paz entre as famílias neste Natal? A sua própria família tem recebido o melhor tratamento, pelo que se lê nos noticiários políticos (e até mesmo nos policiais). No entanto, de resto, esmera-se em criar, diariamente, pautas para dividir e polemizar – ao menos entre os mais atentos. Passei a adolescência em meio a um estado de exceção, com repressão política, perseguição a opositores do regime ditatorial, censura da imprensa e da produção cultural. No entanto, não lembro de rupturas entre pessoas que não estivessem envolvidos diretamente com o regime, ou seja, militares ou policiais e seus familiares, ou pais com filhos “metidos” com a luta armada. Havia uma polarização, até meados dos anos setenta, um tanto medrosa por aqueles que, como eu, assistiam de longe os rumos do país. Ou seja, não éramos capazes de chegar a um estado de animosidade, na vida cotidiana, capaz de provocar rupturas como as que vemos hoje, em pleno estado democrático e de direito (nesse último quesito, nem tanto, por tudo o que Judiciário tem promovido de inseguranças).

O irmão do ator Gagliasso não apenas compartilhou uma imagem, celebrando o novo partido do presidente Bolsonaro, mas, como é comum dentre os fãs do mito, também partiu para o ataque dos socialistas do Brasil”, citando ainda nomes de artistas como Gilberto Gil e Caetano Veloso. E assim é que que começam as dissensões. Não basta glorificar o mito, é preciso acabar com os ídolos culturais dos outros – irmãos, amigos, parceiros. Falta muito pouco para o início das festas natalinas, creio que não haverá tempo para que uma Medida Provisória pacificadora seja emitida. Minha única esperança então é que o “Tudo é paz” não seja apenas o verso de uma das mais belas canções da tradição natalina.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

OBSERVAÇÃO: A foto que ilustra este texto é proveniente do Twitter do deputado federal Daniel Silveira (PSL/RJ).

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