Claudemir Pereira

CRÔNICA. Orlando Fonseca e a volta do ritmo normal do Brasil (após os devidos festejos de carnaval)

Nosso ritmo

Por Orlando Fonseca*

É um modo muito comum, depois do período de carnaval, a imprensa referir a volta à rotina, com a expressão “o país retoma o seu ritmo normal”. Por “seu” ritmo, entenda-se a característica básica do corriqueiro e da ordem; por “normal” tome-se como provocação, ou insinuação de que o que se vê durante as chamadas “folias de Momo” representam um estado de anormalidade. Como diz a canção popular, “em fevereiro, tem carnaval”, para rimar com “país tropical”. Então existe a efeméride, o tempo que entra na rotina geral, para os que participam da festa e os que fogem dela. É bem verdade, também, que as coisas começam a acontecer para valer depois da festa mais popular da Nação; contudo, não é possível deixar de observar que, por aqui, o carnaval tem a sua cara bem diferente do que se vê em outras regiões do planeta. Por isso, representa, aos olhos de outros povos, algo tão brasileiro como o feijão com arroz, a caipirinha, e os dribles dos pés de muitos jogadores que fazem do nosso futebol um dos melhores do mundo. Ou seja, o que seria realmente o chamado ritmo brasileiro, esse que a imprensa insiste em dizer que voltamos a ele na quarta-feira de cinzas?

O antropólogo Roberto DaMatta não teria dúvidas em situar o simbolismo de tal ritmo, sua cadência dada pelo surdo e pelo tamborim, como uma força que mexe com a estrutura da sociedade, as instituições nacionais, e mesmo com o que se poderia chamar de personalidade do povo. Para além disso, o espírito anárquico – que remete à origem da festa – a fantasia que se sobrepõe às representações ordeiras do cotidiano, a rua tomada pelo povo em êxtase de alegria e libertação, o atentado histriônico contra a autoridade, são marcas, segundo DaMatta, que se entranharam na forma de o brasileiro encarar a realidade, a conjuntura social e política. Tudo por aqui termina em samba, é o mote popular, e a carnavalização é mais do que uma tese.

Mas algo sem muita pressa. Ao contrário do que se tem observado na evolução das escolas de samba, especialmente as cariocas – o que acaba influenciando o resto do país: o ritmo dos sambas-enredos tornou-se mais acelerado, em vista do número dos integrantes.

A escola, mais compacta, demora o mesmo tempo para atravessar a avenida, já os passistas são obrigados a demonstrar mais agilidade e jogo-de-cintura. Igualzinho ao Brasil, até quando o samba “atravessa”, e quem tem de rebolar é o povo. Como as coisas só começam a acontecer em março – e não é só o calendário escolar, o próprio ano-legislativo também – tudo está pautado por este ritmo: reformas, projetos, mudanças. Se dá pra deixar pra depois, e não apenas em relação ao carnaval, não tem por que antecipar, é a evolução da escola Brasil pela avenida.

Pelas notícias sobre o desfile no sambódromo carioca, anunciam-se novidades dos carnavalescos. A conjuntura, como já aconteceu em outros anos, é que está adentrando a passarela. A Mangueira, por exemplo, vem com o samba-enredo “A Verdade Vos Fará Livre”. Pressupõe-se uma clara alusão à ascensão de um certo “messias” na política nacional.

Nas alegorias do carnavalesco, Leandro Vieira, imagina-se o retorno de Jesus Cristo, nos dias de hoje, vindo do morro da Mangueira. Se, ao menos aos olhos de sociólogos e turistas internacionais, a festa está na alma, também reside aí um clima de inconformidade com o estado de coisas que vêm se acumulando ao longo do último ano.

Impossível continuar, ad infinitum, nessa situação de empobrecimento gradativo de parcelas cada vez maiores da população. Um dia tem que chegar a dispersão em que, ao invés de se desmontar a celebração, o desfile, se comece a realizar a comemoração, especialmente a parte da comida.

Dispersão não no sentido de afastamento, mas de irradiação de alegria e solidariedade. Aliás esse é um dos elementos do caráter nacional da carnavalização apontados por DaMatta, na realidade brasileira: a familiaridade, a indistinção hierárquica, a transitoriedade da autoridade: o rei reina por quatro dias, a convivência pacífica entre os componentes da escola. Não é pouco. Resta saber se este “ritmo normal do Brasil”, que a imprensa anuncia a chegada, comporta as mudanças que o povo espera e canta.

*Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Observação do editor: crédito da foto: Tomaz Silva / Agência Brasil

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