Dona Noêmia e as intermitências da morte – Atílio Alencar
Dona Noêmia, vizinha da casa ao lado aqui em Silveira, tem verdadeira paixão pela morte. Volta e meia arrasta as alpargatas rotas até o pequeno cemitério na coxilha que demarca o fim da cidade para se certificar que nenhum parente ou conhecido está sendo velado sem a sua presença, o que seria uma afronta ao seu zelo mórbido. Sempre conta com riqueza de detalhes a passagem daquele irmão mais moço que fora surpreendido pelo mal traiçoeiro, ou da agonia do pai desaparecendo aos poucos na solidão do campo. Guarda um vasto anedotário dos falecimentos e suas diversas causas.
Se é surpreendida, no alto de seus oitenta e tantos anos, auscultando os arbustos, e alguém a alerta do perigo das cobras, repete sempre o mesmo mantra: sou velha, nem as cobras me querem, e se me cravam os venenos, já vou tarde. A morte é uma amiga que tarda a chegar para a Dona Noêmia; mas a espera não a faz amarga.
Às vezes, quando os mortos andam escassos, ela trata de antecipar alguma partida. Esta semana bateu na porta de nossa casa, com um leve desconsolo, anunciando que enfim ficara viúva. Relembrou os primeiros tempos do namoro, a época do matrimônio, a chegada dos filhos; uma nuvem pesada obscureceu os olhos fundos ao rememorar o gosto pelo álcool que, durante anos, fez do marido um companheiro indesejável. Mas desde então, já mudado e muito zeloso, tinha sido um homem bom.
Dona Noêmia estava triste. Difícil dizer alguma coisa para alguém que perde a companhia dos últimos quarenta anos.
Mas eis que passa um conhecido e pergunta pelo suposto finado. Dona Noêmia, absorta na própria imaginação, repete a sentença: morto, foi-se o meu marido. O estranho insiste, mas não pode, ainda ontem andava bem. Enfim, contrariada em sua recém conquistada viuvez, a velha concede: tá no hospital, desenganado. Bem dizer, morto.
Hoje, ela veio contar, um tanto frustrada: na quarta, o marido dá alta e volta pra casa. Recuperou-se de um mal estar súbito, mas passageiro. E a Dona Noêmia, com sua teimosa simpatia, seguirá sondando os muros caiados do cemitério na esperança da visita que tarda.
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