Desigualdade Social: a enfermidade na enfermidade
Por LEONARDO DA ROCHA BOTEGA (*)
Em artigo publicado no site Critic, em 18 de março de 2020, o químico e filósofo espanhol Santiago López Petit afirmou que “cada sociedade tem suas próprias enfermidades, e estas enfermidades dizem a verdade sobre esta sociedade”. Tal frase me levou a refletir sobre a principal “enfermidade” da sociedade brasileira: a desigualdade social. Nessa reflexão metafórica poderiam ser elencadas também o autoritarismo, o racismo estrutural, a homofobia, o feminicídio, a corrupção, o sistema político pouco representativo, as políticas públicas precárias. Porém, de uma forma ou de outra, todas essas “enfermidades” são agravadas em sociedades profundamente desiguais como a brasileira.
O tema da desigualdade social ganhou forte impulso nos debates dos organismos internacionais na última década. Apesar de nunca ter deixado de ser um tema relevante, acabou sendo secundarizado pelo predomínio do pensamento monetarista e dos temas ligados ao financismo. A crise econômico-financeira de 2008/09 fez a realidade bater à porta. Em 2018, o Banco Mundial, fazendo um balanço do crescimento das desigualdades sociais nos últimos anos, informou que 3,4 bilhões de pessoas (quase metade da população mundial) não conseguem satisfazer minimamente as suas necessidades básicas. Nos Estados Unidos, segundo o U.S. Census Bureau (principal órgão de estatística do país), em 2018 a desigualdade de renda atingiu o nível mais alto em 50 anos desde que a medição foi iniciada. Tal fato levou o presidente do Federal Reserve Bank of Philadelphia Patrick Harker a afirmar, no último dia 28 de maio, que o país entrava na crise gerada pela Pandemia da Covid-19 “em um lugar perturbadoramente desigual, assolado por sérias disparidades de renda, riqueza e oportunidades”.
Voltando ao Brasil, é sempre importante registrar que a desigualdade social é um fenômeno de nossa própria formação histórica. Os quatro séculos de escravidão, a constituição de um capitalismo tardio, dependente e desigual, o acelerado e desordenado processo de urbanização, a ausência de uma reforma agrária e a falta de políticas sociais consistentes, produziram estruturas econômicas e sociais que, usando as palavras da economista Márcia Pedroso, “tenderam muito mais para a reprodução da exclusão do que para a inclusão social”.
Em que pese o significativo fato de que durante os governos Lula-Dilma mais de 30 milhões de pessoas tenham saído da pobreza e outras 16 milhões da extrema-pobreza, a redução da pobreza não assumiu um caráter estrutural. Os últimos anos têm demonstrado isso. Desde 2014, quando o país passou a adotar a austeridade econômica, 4,5 milhões de pessoas passaram a viver com menos de 145 reais mensais. Apesar do discurso de que “a economia estava melhorando”, em 2019, segundo o IBGE, cerca de 170 mil brasileiros entraram para a pobreza extrema. Assim, o ano de 2020 iniciou com 13,8 milhões de brasileiros vivendo em condições de extrema-pobreza.
Tal fato demonstra na prática o quão deslocado da realidade estão os dogmas do ministro Paulo Guedes que, em 18/12/2019, afirmou: “Não olhe para nós procurando o fim da desigualdade social”. Podemos até tentar não “olhar”, porém, a Pandemia da Covid-19 nos impõe essa tarefa. Entre 17 de abril e 27 de maio, os 20 distritos mais pobres da cidade de São Paulo registraram um crescimento de 348% nas mortes pelo SAR-CoV 2. Enquanto isso, o ministro falava em “ganhar muito dinheiro usando recursos públicos para salvar grandes companhias”. A nova enfermidade está expondo uma série de verdades, entre elas a de que no “baú de velhas novidades” que o ministro propaga não há nada que indique um caminho para ao menos minimizar as nossas “velhas enfermidades”.
(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).
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