A “boiada” estacionou na frente das universidades
Por VALDECI OLIVEIRA (*)
Na hoje famosa reunião ministerial de 22 de abril, cujo conteúdo chocou aqueles que esperavam um mínimo de civilidade e seriedade em um encontro de todo primeiro escalão do governo (de qualquer governo), uma frase, entre muitas outras ditas, chamou a atenção e mostrou a real preocupação dos presentes na crise sanitária pela qual passa o mundo e o país.
Na ocasião o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, afirmou que, uma vez que as atenções da imprensa e da sociedade estavam direcionadas ao combate à Covid-19, seria o momento ideal de o governo tirar proveito da “oportunidade e “ir passando a boiada”, de “baciada”. Em outras palavras, aproveitar a pandemia, que já enlutou mais de 40 mil famílias, e fazer aquilo que, em uma situação de normalidade, atrairia críticas e resistências. Sobre o combate à doença e ações com vistas a mitigar os sofrimentos da nação, nenhuma palavra.
Se a dita frase da “boiada” foi de Salles, quem está na busca de colocá-la em prática é outro ministro, o da Educação. Abraham Weintraub, que também integra o núcleo duro, ideológico, negacionista e antidemocrático do executivo federal, usa a desculpa da pandemia para nomear todos os reitores e reitoras das universidades federais, cujos mandatos estejam findando, como se a crise impedisse o funcionamento dos colégios eleitorais e as escolhas não pudessem ser por meio digital. O Parlamento gaúcho, assim como muitas instituições públicas e privadas, tem utilizado diariamente ferramentas online para realizar reuniões, deliberar e votar.
Se o desejo de intervenção – não há outro adjetivo melhor para classificar a Medida Provisória 979 – for levado a cabo, até dezembro, serão 18 as universidades públicas que serão comandadas por nomes impostos pelo governo, indo contra a tradição de que essa escolha seja feita pela própria comunidade acadêmica, que apresenta uma lista tríplice de onde reitor ou reitora deve, ai sim, ser escolhido pelo MEC.
A MP, na verdade, se configura num desejo inconfessável do governo de controlar o que se pensa e se produz nas universidades federais. Essa iniciativa está incluída na chamada “guerra cultural” preconizada pelo astrólogo Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo, para acabar com o que considera doutrinação feita pelos “comunistas” na “terra brasilis”. Nesse espectro deve-se incluir a imprensa, as artes, as relações internacionais e as pautas comportamentais e de costumes. Seria até engraçado se não fosse trágico o ressurgimento, em pleno século XXI, de um discurso tosco que nos faz voltar mais de 50 anos, como se vivêssemos em plena Guerra Fria.
A MP 979 coloca na lata do lixo o caráter legítimo da autonomia das universidades que, destaco, não foi dada por nenhum governo, mas conquistada com muita luta, por aqueles que produzem nossa vida acadêmica. Ela nos remete a um período que não deixou saudades, mas muita injustiça e feridas ainda abertas da ditadura civil-militar pós-1964.
A cada dia que passa, num cenário em que o placar das mortes pelo coranavírus só aumenta, o executivo federal, no lugar de fortalecer o Ministério da Saúde, escolhe a via autoritária para o MEC impor sua vontade sobre nossas universidades, reconhecidas nacional e internacionalmente pela excelência na pesquisa e formação do conhecimento. Aí está a nossa UFSM como grande atestado do que afirmo.
Mas felizmente algo mudou. A apatia ao absurdo parece ter acabado, e hoje ninguém mais está baixando a cabeça aos rompantes ditatoriais do governo Bolsonaro. Os presidentes do Senado e da Câmara Federal já estudam devolver a MP ao Executivo, partidos entraram com uma ação direta de inconstitucionalidade, a comissão externa da Câmara criada para acompanhar os trabalhos do MEC foi contra a medida e entidades representativas da sociedade civil e das comunidades acadêmicas repudiaram a proposta, que viola duramente o preconizado em nossa Constituição da gestão democrática no ensino público. Ou seja, a sociedade vem deixando claro ao cidadão que hoje habita o Palácio do Planalto que estar no governo não significa poderes ilimitados e que o contraditório só não é aceito nas ditaduras.
Democracia, ensinemos ao senhor presidente, é muito mais do que o que ele falou logo após eleito, de que os derrotados deveriam se curvar aos vencedores. Democracia é respeitar o diferente, é governar para todos e todas, é garantir vez e voz às minorias. É ter responsabilidade, respeito e decoro pelo cargo que ocupa. É reconhecer que os pesos e contrapesos dos poderes em uma República existem justamente para assegurar o funcionamento desta.
Não será amordaçando as nossas universidades, sangrando seus orçamentos e impondo regras “goela abaixo” a essas instituições que teremos um país melhor. Com isso, o que veremos é o público servindo ao interesse privado, é o atendimento aos desejos específicos de uma só ideologia, é tirar a voz de milhões em detrimento de um só grupo, é o apagão de qualquer traço de decência. E isso tem nome: autoritarismo.
(*) Valdeci Oliveira, que escreve sempre as sextas-feiras, é deputado estadual pelo PT e foi vereador, deputado federal e prefeito de Santa Maria. Também é Coordenador da Frente Parlamentar em Defesa da Duplicação da RSC-287
Observação do editor: a foto (da face norte do prédio da Administração Central da UFSM, em Camobi), é uma reprodução do Google.
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