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CRÔNICA. Orlando Fonseca, o debate lá de cima e o cotidiano de cá, ‘nossa guerrinha contra a ignorância’

Guerra cultural

Por ORLANDO FONSECA (*)

Já se disse muito bem que não há guerra contra um “inimigo”, quando se trata de enfrentamentos ao coronavírus. O vírus é o que é – segundo alguns cientistas, sequer pode ser enquadrado como ser vivo – sem a pretensão de inimizades com a raça humana. Diria também que não quer saber de amizade. Cumpre apenas o papel que lhe cabe na natureza, evoluindo como lhe é específico.

Se está cada vez mais letal, é coisa típica das coisas que seguem leis naturais. Circunstância muito distinta do que se dá entre os seres humanos, os quais, por serem providos de racionalidade, são capazes de eleger adversários, constituir oposições e iniciar disputas ferrenhas, na defesa de seu território ou de suas ideias. Nesse campo, como se podem ver por inúmeros indícios ou sintomas, há uma verdadeira guerra.

Semana passada, um grupo de acadêmicos e intelectuais, entre eles Chomsky, Salman Rushdie, Margaret Atwood e Martin Amis, assinaram uma carta aberta, denunciando o que tratam como crescente intolerância, dentro do ativismo progressista dos Estados Unidos.

Nos eventos de protesto que se seguiram ao assassinato de George Floyd, os quais ganharam as ruas de vários países, viram-se muitas atitudes consideradas pelo grupo como movimento contra o debate.

Para os signatários da carta, isso está afetando ambientes tipicamente constituídos para a convivência com pensamentos divergentes, as universidades, a imprensa, as revistas acadêmicas, o que levará a um empobrecimento do debate público.

Aqui do meu canto, muito, muito abaixo da linha do equador, fico pensando sobre o que é pior: a violência policial (a violência do estado) capaz de matar pessoas e aumentar as desigualdades, ou a divergência entre intelectuais que, ao menos para mim, são referências quando se trata dos temas discutidos a respeito da humanidade.

A reação do grupo citado não é apenas como uma ação idealista, mas contra as consequências profissionais que qualificam como “terríveis”, pois pessoas estão sendo demitidas, ou desqualificadas nos círculos acadêmicos mais elevados.

Ao mesmo tempo em que é preciso conduzir a luta contra as discriminações, contra fundamentalismos sem fundamento, a tolerância zero ao racismo, ao sexismo ou à homofobia, também é preciso evitar o efeito colateral que acaba por tentar silenciar qualquer dissidência. A esta tendência os críticos chamam de “cultura do cancelamento”

Já vimos isso por aqui, quanto ao incitamento à filmagem de professores para denunciá-los. Cada vez mais vemos estampadas em jornais ideias estapafúrdias sobre “comunistas” nas universidades, nas quais os estudantes estariam apenas fazendo balbúrdia. Argumento sem base alguma.

Pela minha experiência, creio que haja mais ufologistas – que acreditem em discos voadores – no Ensino Superior do que adeptos do marxismo. Isso se reflete no modo como a educação tem sido tratada no país, nestes últimos anos.

A cultura, da mesma forma, é tratada como política pública de menor importância, sequer um ministério tem para conduzir, minimente, um programa. Enquanto nos Estados Unidos e Europa se questionam as ações de grupos que querem derrubar estátuas de escravistas, e o reflexo disso na intolerância ao debate, como uma “ameaça à democracia”, por aqui a gente ainda vê proliferar argumentações sem base alguma, dados tirados de seu contexto histórico para fundamentar crendices, convicções em vez de provas para assassinar reputações.

Nessa guerra, o inimigo está entre nós. Para o coronavírus, melhor é a distância (mesmo que insistam na cloroquina); para a intolerância, arte e cultura. Diante do debate nas altas esferas, a nossa é ainda uma guerrinha contra o vírus da ignorância.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Observação do editor: A imagem (sem autoria determinada) que ilustra esta crônica é uma reprodução da internet.

 

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4 Comentários

  1. Pano de fundo americano são as eleições. Necessidade de mobilizar o voto dos afrodescendentes e jovens. Evitar a reeleição de qualquer maneira, não importa o ‘preço’.
    Pichações ‘ Viva la revolucion!’, “Liberal, sua bala também esta guardada”, etc. Milícias armadas de todos os matizes ideológicos.
    Criação da Zona Autonoma do Capitólio em Seattle, com pelo menos 7 homicídios, cópia mal feita de Barcelona 1936.
    Instalação de pessoas com a função de analisar os textos de jornal em algumas empresas de comunicação para verificar se nada ‘ofensivo’ foi escrito, inclusive dos funcionários(as) LGBT e afrodescendentes.
    Querela entre nativo-americanos e militantes negros que também seriam ‘colonizadores’.
    Resumo da ópera: em qualquer toca de coelho que se cair acaba-se no Mundo Maravilhoso de Dalí. Império em franca decadência, mas bastante funcional ainda.

  2. Existem duas entrevistas com Herbert Marcuse no Youtube. Uma é de 76. Afirma que a luta de classes saiu do comunismo para uma ‘social democracia’. As condições que embasavam Marx não existiam mais, o capitalismo avançado tinha mudado o padrão de vida das populações. As minorias e o movimento dos direitos civis seriam uma vanguarda que levaria as massas para a revolução.
    Marcuse, também da Escola de Frankfurt, pai da ‘Nova Esquerda’, chamava Carl Schmitt o mais brilhante jurista do Terceiro Reich.
    Não fica só nisto, boa parte do ambientalismo também foi adotado pela Nova Esquerda, mas é outro assunto.
    Busílis? Problemas existem. Mas como são evidentemente instrumentalizados geram reação, debate estéril, tudo que não trabalha para a solução dos problemas.

  3. O que pode ser dito sobre a teoria critica grosso modo ? Critica a civilização ocidental e iluminismo (Dialética do Iluminismo de Adorno e Horkheimer, por exemplo). positivismo (que já não é mais o de Comte) e até Marx. Por isto o ‘não somos comunistas’. A Teoria é ensinada aberta ou veladamente nos cursos de letras, comunicação, social, no direito e no Centro de Educação. Paulo Freire? Pedagogia Critica. Alessandro Baratta, criminologia critica, abolicionismo, garantismo, etc.
    Dai um fato engraçado, o combate ao ‘terraplanismo’ jogou a imprensa aliada no combate a Adorno que criticava o positivismo/empirismo. Qual o objetivo da critica? Relativismo, convenções sociais/ideologia passando como ‘ciencia’

  4. Chomsky que chama Lacan de charlatão e picareta para baixo.
    Questão toda revolve em torno de Gramsci e a Escola de Frankfurt/Teoria Critica. Departamentos de humanas nos EUA estão na sua grande parte aparelhados (a ‘Grande Marcha para as Instituições’ de Gramsci). Produção séria deixou de existir. Caça as bruxas, ‘cancelamento’ dos que não aderem, etc. Noutro dia saiu uma coluna no Diário mencionando o livro ‘Imposturas Intelectuais’ (do qual Lacan é personagem). Mal sabem que existe um Sokal 2.0. Em ambos os casos, para quem tem tempo e paciência, rende risadas ou indignação, depende do caso. Porque se replica aqui e custa o dinheiro suado do contribuinte.

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