Saúde

CRÔNICA. Orlando Fonseca, pandemia e relatividade

Teorias de relatividade

Por Orlando Fonseca*

O limite é tênue entre a Pandemia e o Pandemônio. A aparente tranquilidade em que vivemos esconde uma realidade complexa e talvez, diante do inusitado da crise, plena de absurdos. Logo nas primeiras semanas foi a explosão de fake news sobre as origens do coronavírus e a minimização do potencial da doença; depois vieram as medidas erráticas das autoridades com as mortes se multiplicando – tivemos três ministros da saúde, e um ainda é interino; em seguida, as propostas mais bizarras de processos de cura, tanto oriunda das crendices, quanto de pretensas autoridades médicas ou científicas. Nos últimos dias, diante do incômodo gerado pelo isolamento social e pelo debate sobre a volta à normalidade, a relativização de autoridades – políticas ou médicas – diante das mortes por Covid-19 no país.

Já ouvimos repetidas vezes o presidente da república afirmar que pessoas morrem, e que a ele não interessa o número de mortos porque não é coveiro. Sendo ou não, pesa sobre ele a suspeita de estar enterrando o país com sua falta de propostas de recuperação de todos os setores. Mas isso é tema para outros debates. A fim de justificar a retomada da economia, com a abertura do comércio e o retorno às aulas, temos visto declarações, no mínimo, estarrecedoras por aqui. Gente de alta responsabilidade vem a público demonstrar que a pandemia não é bem assim, que morre mais gente por outras doenças; que é preciso 70% da população se imunizar – no chamado contágio por rebanho – para que o vírus perca força. Sem levar em conta o número de mortos, nesse caso, e desconsiderando os protocolos de isolamento social por recomendação da OMS. Esta não é apenas uma associação de amigos, mas uma alta organização da ONU, que o pandemônio opiniático-sem-noção também tem relativizado.

É comum observar que profissionais médicos desenvolvem uma atitude fleumática na sua atividade, por lidarem no cotidiano com a possibilidade da morte – estão no front desta batalha, deixando opiniões de lado, fazem o seu trabalho. Gestores, no entanto, quando se trata de política pública, ao desconsiderarem o valor da vida dos cidadãos, podem desenvolver o que se chama de necropolítica. Ou seja, vai morrer, e daí? Política de redução de danos, simplesmente, pois importante é manter sólidas as bases da economia. Vivemos uma república democrática, e a leniência das autoridades, tanto por opinião expressa, quanto por deixar de tomar as medidas que lhe cabem para proteger a população, permite mortes. Tratar a pandemia como uma gestão de números, achar que o percentual de óbitos é baixo, é submeter-se à lógica do mercado, que não reconhece sentimento.

Temos um número recorde de mortes por um fator – o coronavírus, associado, evidentemente a comorbidades. Mas se não levarmos em conta o sentido de uma vida que se perde, para os familiares, para os amigos, vai-se criando uma autoimunização contra o sentido de humanidade. Só quando se perde um familiar, um amigo próximo é que se dimensiona o que é notícia divulgada pela mídia. Alguém que ainda teria uma vida produtiva pela frente, morre por causa de um contágio, adquirido por descuido ou por falta de equipamentos e medicações adequadas no sistema. O negacionismo é a contrapartida da população ao descaso governamental. Dizer que a mídia está causando pânico na população é uma falácia, pois a ideia por trás desse tratamento monotemático da imprensa tem a ver com a tentativa de alertar para procedimentos capazes de diminuir o impacto sobre o sistema de saúde com um número tão alto de casos. O próprio Ministério da Saúde deixou de divulgar os números em horário que permitisse às redes dar a notícia em horário nobre, como estratégia de confundir.

Diante de tudo isso, é preciso perguntar, por que será que as potências mundiais estão investindo bilhões de dólares na criação e na produção de uma vacina? Porque é preciso encontrar a cura em face da força letal de um vírus. Para que o pandemônio não se instale de vez, seria preciso uma vacina de inteligência contra os estragos da ignorância generalizada.

*Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Observação do editor: Crédito da foto que ilustra o artigo: Gerd Altmann / Pixabay

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4 Comentários

  1. Números, para alguns pelo menos, não interessam mais. Noticiário idem. Questão de sanidade mental. O que se faz com a informação ‘morreram mais tantas pessoas hoje’, autoflagelação? Temos pelo menos até junho do ano que vem nesta toada.
    Por que estão investindo? Por conta da economia, uma parte simplesmente deixou de existir. Empresas aéreas colocaram um mar de gente na rua. Boeing descontinuou o 747 a partir de 22, demitiu gente. Alás, iria comprar parte da Embraer e ‘levar tecnologia tupiniquim embora’, desistiu do trato. Warner baixou o gadanho na DC Comics, DC Direct que fazia os brinquedos irá fechar, na área de quadrinhos demitiu 30% do pessoal (incluindo diretores) e os 25% títulos menos rentáveis irão ser descontinuados. Disney vai mandar filmes direto para streaming, Mulan, filme de 200 milhões de dólares é o exemplo mais recente, necessário pagar 30 dólares adicionais além da assinatura do canal. Salas de cinema e distribuidoras irão pagar o pato. Alás, Universal anunciou que via reduzir a janela entre exibição no cinema e streaming/DVD/Bluray, era 85 dias e deve passar para 17.
    Economia, para quem não sintoniza bem em FM, é importante. Se for para o vinagre traz instabilidade, turbulência, conflito. Alás, os imbecis do ‘vamos aproveitar para construir uma nova sociedade’ torcem para isto.
    Prognostico, governo federal corre o risco de virar um RS, funcionários do executivo recebendo parcelado e os demais em dia. STF já mandou proposta de orçamento com reajuste.
    Vacina de inteligência, como toda vacina, não imunizaria a todos. Nas usuais o problema é o sistema imunológico. Na hipotética o problema seria no sistema nervoso central.

  2. Necropolitica é o aproveitamento politico da pandemia. Pragmatismo é a palavra mais adequada, o que não tem solução solucionado está. Soluções utópicas são impossíveis. Vide POA, governante que descontenta muita gente ameaça cair e o resultado pode ser exatamente o oposto ao que se deseja. Argentina, que já estava quebrada, fechou o que pode, em breve deve pedir ‘ajuda humanitária’. Ou seja, os outros podem morrer para que argentinos sejam salvos.
    Negacionismo é mais uma palavra repetida a exaustão, todo mundo sabe onde para o burro do leiteiro (coloca-se um rótulo, desqualifica-se). Questão toda é visão de mundo, ninguém nega que a pandemia exista, diferença está na maneira de enfrentar o problema.
    Midia causando pânico na população. Cenas de caminhões do exercito italiano carregando caixões durante a noite (mídia nem se interessou em saber a data correta da chegada da doença na Itália). Martelou o governo federal e no fim a bomba estourou mais forte no norte e nordeste que não teve quase cobertura no inicio. Jornalista da BBC inglesa fez reportagem das covas abertas em SP, segundo ele os coveiros ‘não estavam dando conta’. Detalhe: a cena do sujeito mostrava o mesmo na frente de dezenas de covas abertas no cemitério paulista, ninguém estava sendo enterrado, nenhuma nova cova estava sendo aberta e a criatura estava lá, se ocorressem enterros de contaminados não poderia estar. Ou seja, jornalistas são exagerados por natureza, quando a ideologia ajuda são mais ainda. Se isto não é terror, que provoca emoção e não a razão, que facilita o controle, não sei o que é.

  3. Termo correto é imunidade de rebanho. Como prognosticado em antigo comentário chegamos há algum tempo na fase que as mortes viraram estatísticas. Prognosticada também é a fase do ‘farinha pouca meu pirão primeiro’.
    OMS errou e reconheceu os erros. Tuitou que a doença não passava facilmente de humanos para humanos em janeiro. Seus inspetores foram barrados de entrar na China (que já sabia que a coisa era grave desde outubro do ano passado) e ficou por isto mesmo. Atrasou a declaração de ‘emergência na saúde pública de interesse internacional’ por pressão politica chinesa. Pelo mesmo motivo a imprensa internacional declarou a pandemia antes da organização pelo mesmo motivo. Ou seja, se assuntos técnicos sofreram influencia politica antes porque os novos não sofreriam? La garantia soy yo?

  4. Cabeças mais fracas podem se impressionar com a critica de ‘falta plano’ de quem nunca planejou nada de importante na vida (planos da burocracia estatal só trocam de números e datas). Também podem se impressionar com a critica de ‘falta liderança’ e as ‘lideranças’ anunciadas na mídia ou auto-declaradas por políticos (liderança não é questão de posição, cargo ou berço).

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