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Onde andam os bares da vida? – por Atílio Alencar

Foi nos bares da vida que muita gente boa começou a se aventurar no que realmente gosta. A boemia, o convívio descomprometido entre pessoas e grupos nem sempre convergentes, mas geralmente dispostos a prolongar a conversa até a última gota da garrafa, é uma marca saudável desta verdadeira tribuna popular que é o bar. Quer dizer, nem todo bar. Há um tipo muito específico, embora passível de amplas variações, que define o bar democrático por excelência, reconhecível tanto pelo seu ambiente quanto por sua fauna – ambos inconfundíveis, se não indissociáveis.

O bar que serve de reduto para quem procura a experiência ao mesmo tempo prosaica e sublime de dividir a mesa ou o balcão com ilustres desconhecidos, para entre um gole e outro proferir suas convicções, teses e descontentamentos – esta reserva ambiental de mentes inquietas – está em vias de extinção.

Não creio estar sendo exagerado ao observar isto; nas tantas cidades do interior que visitei em anos recentes, quase toda a galeria de bares antigos, clássicos por sua vocação em reunir gente diversa, pelo acesso gratuito e pelos preços populares, fazem parte da memória da população, mas poucos resistiram à ascensão de outros tipos de empreendimento.

Num fenômeno semelhante ao desaparecimento dos cinemas de calçada, os bares democráticos foram, aos poucos, inviabilizados por investimentos de natureza mais fria, indiferentes à freguesia leal que adotava como segundo lar seu boteco predileto. Em seu lugar, pululam aquelas espremidas lancherias de mobília em plástico amarelo, destituídas de identidade própria e convertidas em outdoors rasteiros estampados com as grosseiras propagandas de cerveja.

Ou então viram seu público migrar, na medida em que renovam-se as gerações e aumenta a suscetibilidade ao apelo publicitário, para bares que guardam muito pouco do espírito comunitário dos tradicionais pontos de encontro, e que substituem o charme espontâneo do botequim por um apelo estético superficial e preços exorbitantes.

Claro, os tempos mudam, e é natural que algumas coisas percam sentido e adesão. Mas perambular pelas ruas de Santa Maria e encontrar tão poucos bares de caráter popular no centro – o Café Cristal continua, mesmo repaginado, sendo relativamente fiel à sua história – e confirmar esta mesma realidade quando vou à Cachoeira do Sul, não deixa de ser uma experiência melancólica.

O antigo Bar do Garça, que antes ficava na esquina da Praça dos Bombeiros, hoje está reduzido a um cubículo quase impraticável. Foi despejado do seu ponto histórico para dar lugar a uma boate com nome de boteco, especializada em sertanejo universitário – seja lá o que isso quer dizer. O charmoso Moba, na Rua 7 de Setembro, em Cachoeira, cuja calçada ostentava um letreiro sublinhando suas especiarias, é agora uma lojinha de tecidos, se não me trai a memória. Um a um, os bares que integravam parte do patrimônio histórico e cultural destas cidades, simplesmente sumiram.

Em Porto Alegre e outras capitais, talvez pelo engajamento das novas gerações na tarefa de manter ativas estas células vivas da memória urbana que são os bares, há mais focos de resistência boêmia. Impossível não pensar no Odeon, por exemplo, ou mesmo no soturno Van Gogh, quando lembro das noites porto-alegrenses. São bons exemplos, cada qual ao seu modo, do tipo de bar a que me refiro.

Já em Santa Maria, sinceramente, penso que andamos desperdiçando boa parte da história oral da cidade, ao sermos cúmplices da troca de uma boa conversa de bar por bares onde a conversa é secundarizada. O êxodo boêmio, admito, é uma coisa que me preocupa, pedagogicamente falando.

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